Enquanto o desastre se apodera do Haiti, os olhos da Igreja se concentram no país mais pobre do Ocidente, cujo sofrimento foi esquecido durante muito tempo, denuncia o cardeal Josef Cordes.
O presidente do Conselho Pontifício Cor Unum, dicastério vaticano encarregado de coordenar as agências católicas caritativas e de ajuda, falou com Zenit das consequências do terremoto que devastou Porto Príncipe no dia 12 de janeiro.
Nesta entrevista, o purpurado alemão fala dos danos sofridos por este país e das necessidades que terá de enfrentar nos próximos dias, meses e anos.
–O que o senhor sabe dos danos provocados pelo terremoto?
— Cardeal Cordes: No início, a comunicação era difícil, mas estamos começando a receber informes das agências católicas que trabalham diretamente lá, como os Catholic Relief Services [CRS, a Cáritas dos bispos dos Estados Unidos, N. da R.], os representantes nacionais da Cáritas enviados ao Haiti pelos seus bispos, a Cruz Vermelha Internacional e a Conferência Internacional da Sociedade de São Vicente de Paulo.
Ficamos sabendo de alguns fatos também pelos meios de comunicação (vítimas, destruição de casas etc.). O núncio apostólico em Santo Domingo foi o primeiro em fazer contato conosco através de um e-mail com o arcebispo Bernardito Auza, núncio apostólico no Haiti. Dom Auza nos informou sobre as perdas da Igreja, tanto em termos de vidas humanas como de danos materiais. O arcebispo de Porto Príncipe, Dom Joseph Serge-Miot, que ele descreveu como um pastor “bom” e “sempre sorridente”, faleceu ao ser arremessado da varanda da sua residência pela força do terremoto. Outros sacerdotes, religiosos e pelo menos 9 seminaristas foram sepultados sob os destroços. A catedral e todas as paróquias foram destruídas. Dom Auza está visitando as estruturas católicas e outras, muitas das quais foram danificadas, para exprimir a proximidade da Igreja e do Santo Padre.
–Quais são as necessidades mais imediatas?
— Cardeal Cordes: Toda catástrofe natural é única, mas nossa longa experiência de desastres precedentes (por exemplo, o tsunami de 2004 e o furacão Katrina) mostra duas fases diferentes:
a) A curto prazo, são necessárias pessoas para salvar vidas, responder às necessidades básicas (água, comida, casa, prevenção de doenças), restabelecimento da ordem.
b) A longo prazo, é necessário reconstruir e para isso é preciso oferecer ajuda espiritual e psicológica, sobretudo quando a atenção dos meios de comunicação diminui.
Bento XVI exortou todas as pessoas de boa vontade a serem generosas e concretas em sua resposta às necessidades imediatas dos nossos irmãos e irmãs que sofrem no Haiti (cf. Audiência geral, 13 de janeiro de 2010). É importante oferecer uma ajuda tangível através das agências caritativas da Igreja Católica. No mundo inteiro estão sendo organizadas muitas iniciativas neste sentido.
Por exemplo, a Conferência Episcopal Italiana estabeleceu o dia 24 de janeiro como Dia de Oração e Caridade pelo Povo do Haiti. As embaixadas nacionais da Santa Sé estão oferecendo a Santa Missa pelos nossos irmãos e irmãs que sofrem. Temos de interceder através da oração pelos que sofrem no Haiti, e não somente com o dinheiro.
–O que a Santa Sé está fazendo, em particular através do Conselho Pontifício Cor Unum?
— Cardeal Cordes: Em seu apelo, Bento XVI pediu especificamente que a Igreja Católica se mobilizasse imediatamente através das suas instituições caritativas. Muitas organizações católicas já começaram a trabalhar, oferecendo em particular especialistas nesta área (por exemplo, as Cáritas nacionais da Alemanha, Irlanda, Suíça, França, Áustria, a Ordem de Malta). A Cruz Vermelha Internacional está trabalhando através do seu escritório em Porto Príncipe. Recebemos informes diários dela.
Cada vez que ocorre uma situação desse tipo, é costume que uma agência coordene os esforços de apoio. Com este objetivo, horas depois do terremoto, nosso conselho pontifício entrou em contato direto com os Catholic Relief Services (CRS). Nós lhes pedimos que coordenem a resposta neste âmbito, considerando que contam com 300 membros no Haiti, sua longa história de mais de 50 anos no país, sua experiência para enfrentar desastres semelhantes no mundo inteiro e seus recursos. O presidente dos CRS nos garantiu: “Estamos comprometidos e dispostos a informar e coordenar a resposta da Igreja de todas as formas possíveis, para que possa ser um gesto eficaz do amor de Deus”.
Sabemos, através do núncio apostólico no Haiti, que estão sendo realizados encontros com os CRS e com a Cáritas Haiti, na nunciatura de Porto Príncipe, para tratar das necessidades locais urgentes. É essencial que a Igreja local seja ouvida. Por este motivo, alegra-nos que tenham participado dos encontros os bispos haitianos que puderam viajar.
–Que ajuda a fé oferece em uma catástrofe como esta?
— Cardeal Cordes: A fé daqueles que sofreram neste desastre desempenhará um papel fundamental, não somente para aliviar suas feridas físicas e suas perdas, mas também para enfrentar a dimensão espiritual e o sentido que é preciso descobrir nesta catástrofe. Ao visitar as áreas devastadas e falar com os sobreviventes, muitos me expressam a própria gratidão a Deus por tê-los deixado com vida e pela generosa assistência das suas famílias, amigos, vizinhos e igrejas do mundo inteiro. Dado a elevada porcentagem da população católica (80% do país), a fé e a concreta presença-testemunho da Igreja terá um papel muito importante na tragédia atual.
O Conselho Pontifício Cor Unum já estabeleceu que o próximo encontro da Fundação Populorum Progressio será em Santo Domingo, em julho deste ano. A fundação, instituída por João Paulo II, tem por objetivo ajudar comunidades agrícolas indígenas, mestiças e afro-americanas na América Latina e no Caribe. No passado, ajudamos muito o Haiti e continuaremos fazendo isso. Obviamente, nossa proximidade espiritual é de importância capital. Desta vez, celebraremos a Santa Eucaristia com os bispos procedentes de vários países da América Latina e do Caribe.
Sem fé, esta tragédia se converteria em um desastre completo. Por este motivo, para nossos irmãos e irmãs, será essencial rezar juntos; constatar que os cristãos do mundo inteiro compartilham seu peso como membros da família divina; experimentar a compaixão do nosso Santo Padre. Estes são motivos de esperança e de energia.
Em sua primeira encíclica, a Deus caritas est, o Papa nos convida a recordar a resposta de fé que Santo Agostinho oferece ao nosso sofrimento: “Si comprehendis, non est Deus – se o compreendesses, não seria Deus”. O Santo Padre acrescenta que “os cristãos continuam a crer, não obstante todas as incompreensões e confusões do mundo circunstante, ‘na bondade de Deus e no seu amor pelos homens’ (Tt 3, 4)” (n. 38).
–Desta tragédia sairá algo positivo?
–Cardeal Cordes: Este é um desastre que provocou muitíssimas vítimas e um imenso sofrimento. Serão necessários muitos anos para que a nação possa se reconstruir materialmente e para que a população se recupere espiritualmente. Por este motivo, a Igreja tem de estar presente, ainda que outros vão embora.
Já hoje podemos ver como o bem surge das ruínas. Os olhos do mundo se abrem aos países mais pobres do hemisfério ocidental, cujo longo sofrimento havia sido esquecido. Esta tragédia mostra que dependemos uns dos outros e temos de atender nossos irmãos que sofrem, como fizemos no caso do tsunami e do furacão Katrina. Portanto, temos de garantir que a necessária assistência que agora é oferecida ao Haiti se mantenha a longo prazo, por exemplo, promovendo melhores estruturas da Cáritas e reforçando os laços com o ministério para o desenvolvimento dos governos dos países mais ricos e com as agências de ajuda.
Somos testemunhas e recebemos informação de muitos atos heroicos e desinteressados realizados para salvar a vida de quem se encontrava em perigo. Há milhares de pessoas, procedentes do mundo inteiro e sem nenhum elogio, que estão se dedicando a assistir todos os que precisam. Muitas pessoas se entregam espiritual e materialmente para ajudar os pobres e os que sofrem. Nos próximos dias e semanas, tenho certeza de que encontraremos nesta catástrofe muitos exemplos de bondade.
Os cristãos enfrentam o presente com confiada esperança no Senhor Jesus, crucificado e ressuscitado. Em sua encíclica Spe salvi, o Papa Bento XVI explica como viver os sofrimentos deste momento com a esperança no futuro. Isso não significa que os cristãos saibam o que os espera, mas sabem em termos gerais que sua vida não acabará no vazio: “Somente quando o futuro é certo como realidade positiva, é que se torna vivível também o presente” (n. 2).
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