De acordo com o calendário litúrgico, neste domingo (19), comemoramos a festa da Santíssima Trindade. Dom Emanuele Bargellini – Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo), doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma) e monge beneditino camaldolense – faz os comentários desta solenidade.
Leituras: Ex 34, 4b-6.8-9; 2 Cor 13, 11-13; Jo 3, 16 – 18
Estas duas breves fórmulas de oração são tão familiares aos nossos ouvidos, que talvez não percebamos a extraordinária profundidade e novidade que elas carregam em si mesmas. Nelas ficam guardadas nossa identidade mais profunda e nosso destino mais divino. Elas de fato exprimem a origem da vida divina que habita em nós, vida recebida como dom gratuito no batismo e, ao mesmo tempo, a finalidade e a meta da nossa existência para a eternidade junto de Deus.
Não fomos batizados “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”?
Esse evento de graça nos introduziu na relação profunda com a Santa Trindade, tornando-nos filhos e filhas do Pai por meio de Jesus, o Filho bem amado, quando foi derramado em nós o dom do Espírito Santo, princípio de vida divina e “penhor da nossa herança” eterna (Ef 1,14).
Quantas vezes acabamos repetindo estas palavras, ao iniciar as ações cotidianas mais humildes ou as solenes celebrações litúrgicas, enquanto as acompanhamos com o gesto do sinal da cruz traçado sobre a fronte e sobre o peito? Não faz parte dos gestos mais simples que acabamos por aprender sendo ainda crianças e daqueles que os pais gostam de ensinar com tanto carinho às próprias criancinhas? Este gesto, na sua simplicidade, constitui de fato, uma profunda profissão de fé, que coloca todo nosso ser, mente, coração e obras, em relação vital com a Trindade Santa, Pai, Filho, Espírito Santo.
Desde a tarde da Páscoa, Jesus ressuscitado derramou o Espírito sobre os apóstolos, e com o Espírito a paz e a alegria que vem do Pai, junto com o poder de resgatar o mundo inteiro com o perdão dos pecados, em prol de todos os que acreditarem em seu nome (Jo 20, 20-23). Com o dom do Espírito do ressuscitado inicia uma nova criação (cf. Gn 1, 1-2), a gestação de uma nova criatura, com a história inteira destinada a sofrer as dores do parto e a antecipar a alegria do seu nascimento: junto com os apóstolos, todos nós fomos marcados com o selo do mesmo Espírito “para o seu louvor e glória” (Ef 1, 14). Em todo tempo a vida no Espírito dos discípulos, que inicia na páscoa de Jesus, se torna testemunho surpreendente da potência da Ressurreição e canto de louvor ao amor gratuito do Pai.
Na segunda leitura Paulo nos confirma que a Santa Trindade é o ventre materno que nos gera a vida divina, a casa da nossa morada desde já, na qual somos chamados a construir entre nós relações no sinal do amor recíproco, que têm como fonte e modelo a relação do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que Jesus nos revelou com seus gestos cheios de amor e sua palavra iluminadora. “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito santo estejam com todos vós!” (2 Cor 13,13).
O Missal Romano, renovado depois do Concílio, usa estas palavras do apóstolo como Saudação inicial com a qual o sacerdote celebrante acolhe os fiéis ao começar a celebração da missa. Desta maneira lembra aos fiéis que eles vivem na comunhão da Trindade Santa, e que participando com fé à eucaristia, eles têm a graça de experimentar ainda mais profundamente o amor gratuito do Pai, a caridade sem limite do Filho, e a comunhão gerada pelo Espírito.
Com as luminosas palavras de Santo Ireneu (Adv. Haereses, III, 24, 1), o Concílio Vaticano II conecta o mistério da Igreja ao mistério da comunhão trinitária, até tornar-se quase reflexo da mesma no mundo: “Desta maneira aparece a Igreja como ‘o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo’ “(Lumen Gentium, 4).
Através da história da salvação – a partir do seu centro que é o Mistério Pascal – nos é concedido vislumbrar e, ao mesmo tempo, ter acesso, numa certa medida, ao conhecimento e à experiência da vida interior da Santa Trindade. A constituição Lumen Gentium (cap 1, nn. 1-5), afirma que a Trindade constitui a nascente da qual brota o mistério da Igreja. Ela é também estruturada à imagem da Trindade, como comunhão na pluralidade, a caminho rumo à participação plena da comunhão da mesma, junto com a inteira história e a criação.
Esta visão de conjunto da criação e da história, que jorram do coração de Deus e ficam totalmente orientadas em relação à Trindade, como seu próprio fim, constituem o canto de glória à sabedoria de Deus; é o grande dom que Jesus, o revelador do Pai, nos oferece. É o mistério que hoje contemplamos e celebramos com fé e alegria, como canta o prefácio alternativo da festa: “Ó Pai, quisestes reunir de novo, pelo sangue do vosso Filho e pela graça do Espírito Santo, os filhos dispersos pelo pecado. Vossa Igreja, reunida pela unidade da Trindade, é para o mundo o corpo de Cristo e o templo do Espírito Santo, para a glória da vossa sabedoria” (Prefácio VIII, dos Domingos Comuns).
A vida da comunidade eclesial, nas suas variadas manifestações, se torna o lugar privilegiado da presença e da ação da Trindade; e a existência cristã de cada um, se desenvolve como existência pascal em relação à Trindade. Dela, é epifania e profecia ao mesmo tempo. A identidade profunda da Igreja peregrina no mundo e de cada cristão e cristã vive esta tensão constante entre a sua origem trinitária e a sua plena comunhão com a mesma: da Trindade para a Trindade!
A grande Doxologia que conclui a Oração Eucarística exprime esta profunda consciência da fé da Igreja e o grande impulso de esperança e de alegria que a caracterizam: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, à vós, Deus todo poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre. Amém”.
Estupor, agradecimento, silêncio em adoração nos acompanham ao mergulharmos no mistério inefável da presença da Trindade em nós. No admirável discurso de despedida dos discípulos na última ceia, Jesus salienta em muitas maneiras a extraordinária comunhão com o Pai, com o próprio Jesus e com o Espírito, concedida àqueles que acreditam nele. “Se me amais, observareis meus mandamentos, e rogarei ao Pai e ele vos dará um outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da Verdade” (Jo 14, 15-17). “Nesse dia compreendereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós” (Jo 14,20).
Já extraordinária foi a experiência da intimidade de Moisés com Deus e da sua intercessão em favor de Israel, experimentando a sua misericórdia e a sua fidelidade. Não lhe foi permitido, porém, “ver a glória” dele como tinha pedido (Ex 33,18), “porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo” (Ex 33, 20). Na sua condescendência Deus concede a Moisés ficar na cavidade da rocha e esperar a sua passagem com o rosto coberto pela mão do próprio Deus. Uma vez que Deus passou, Moisés pôde vê-lo apenas pelas costas (Ex 34, 21-22). Deus se compromete a perdoar o pecado do povo e a caminhar com ele até alcançar a terra prometida.
Esta linguagem simbólica, que destaca com força a alteridade e a transcendência de Deus, junto com a sua misericórdia e proximidade, será superada radicalmente pela Boa nova que nos faz conhecer o evangelho de João: Deus Pai se torna visível através do rosto humano do Filho em Jesus de Nazaré. “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18).
Em Jesus nos é dado “conhecer” o Pai, no sentido bíblico da palavra, isso é experimentar seu amor, sua bondade, e participar sua própria vida, como afirma o evangelista: “Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). Talvez a linguagem filosófica usada no passado pela teologia e pela catequese, para deixar vislumbrar o mistério da especificidade de cada uma das três Pessoas divinas na unidade da natureza divina, acabou afastando o mistério da Santíssima Trindade da nossa vida. A escritura e a liturgia nos ajudam a descobrir novamente que ela, Trindade, pelo contrário, constitui a nascente inesgotável da vida, a razão da nossa alegria e esperança, a energia vital que nos habita e nos guia até a plena conformação ao Senhor.
O Espírito, derramado nos nossos corações pela fé e o batismo, nos faz viver em relação filial com o Pai, uma relação liberta do temor e inspirada pela confiança e o amor: “Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, parra recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus”. (Rm 8, 15-16). O mesmo Espírito anima nossa oração, que brota do coração sob seu impulso interior: “Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8, 26). O mesmo Espírito abre o coração à fé (cf At 16,14), assim como, enviado pelo Pai em nome de Jesus (Jo 14,26), recordará aos discípulos tudo o que Jesus ensinou-lhes, e os introduzirá à compreensão plena da sua Palavra, para seguir o evangelho até o dom total de si mesmos, segundo o exemplo de Jesus (cf Jo 14, 25-26; 16, 12-13).
Gerados à nova vida por ter conhecido que Deus nos amou primeiro, o Espírito nos guia àquela liberdade e caridade perfeita que afasta todo temor, e nos faz viver no amor e na confiança filial (1 Jo 4, 18). São Bento, na sua Regra, aponta esta perspectiva de liberdade no amor gerada pelo Espírito, como o cume do caminho espiritual do monge, ao subir todos os 12 graus da humildade que o conforma a Cristo (Regra dos Monges, c. 7, 67-69).
Com certeza, esta é a raiz fecunda e o fruto mais maduro da moral cristã, que brota do impulso interior do Espírito Santo e produz os frutos saborosos do amor, capaz de desapegar-se de si mesmo para se doar na liberdade, sem limite. Como o próprio Jesus, o Filho bem amado do Pai, totalmente obediente ao seu Espírito. Sobre ele desce no momento do batismo no Jordão (cf Lc 3,21-22), o investe e o guia na sua missão para anunciar a boa nova aos pobres (Lc 4, 16-19), e o sustenta na oferta de si mesmo na cruz (Hb 9,14).
A comunidade cristã encontra no Espírito de Jesus a energia e os critérios para estruturar-se em comunidade verdadeiramente humana e espiritual, autêntica antecipação do reino de Deus. Dele aprende a viver no mundo a comunhão que vem de Deus, e a transformar pessoas e relações: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos.”. (1 Cor 12, 4-7).
É sob a inspiração e na força do Espírito enviado pelo Pai, que os discípulos podem enfrentar os desafios das adversidades e das perseguições: “Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados em saber como ou o que haveis de falar. Naquele momento vos será indicado o que deveis falar, porque não sereis vós que falareis, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós”. (Mt 10, 19-20).
À luz desta ação misteriosa e eficaz do Espírito do Pai, derramado por Jesus ressuscitado, em todo discípulo, no corpo da Igreja e sobre a criação inteira para seu pleno resgate, dobramos os joelhos da mente e do coração. O infinitamente transcendente se fez infinitamente próximo para conosco, mais íntimo a nós do que nós mesmos. “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais nos céus em Cristo…. Nele também vós… fostes selados pelo Espírito da promessa, o Espírito Santo… para o seu louvor e glória.” (Ef 1, 3. 13-14).
O ícone da Trindade, pintado pelo famoso e santo pintor russo Andrei Rublev, faz alusão aos três misteriosos personagens que visitaram Abraão, trazendo para ele e Sara a promessa do herdeiro tão esperado (Gn 18). Este ícone apresenta três anjos iguais, sentados ao redor de uma mesa redonda. Os três anjos abençoam o cálice, no qual se encontra um novilho, um bezerro sacrificado, preparado para comer. O sacrifício do novilho significa a morte do Salvador na cruz, enquanto a sua preparação como alimento simboliza o sacramento da Eucaristia. O espaço central diante da pessoa que observa o ícone está livre, está à espera que o próprio observador tome nele seu lugar, junto com os divinos hóspedes. Ali é nosso verdadeiro lugar!
Acolhamos o generoso convite do Senhor. Segundo a palavra do apóstolo, não somos mais hóspedes, mas amigos e familiares da Santa Trindade, filhos amados pelo Pai (Ef 2, 19).
Fonte: Zenit