A “santidade da Igreja” é um tema atual. Não somente por algumas notícias, como os escândalos que Bento XVI e os bispos irlandeses discutiram nessa terça-feira (16), mas também porque ela foi abordada por recentes documentos e atos pontíficios.
O tema está contido no volume Concidadãos dos santos e familiares de Deus. Estudo histórico-teológico sobre a santidade da Igreja, escrito pelo sacerdote português Miguel de Salis, professor da Faculdade de Teologia da Pontíficia Universidade Santa Cruz. Sobre isso, concedeu uma entrevista a ZENIT.
–No Prefácio do cardeal José Saraiva Martins, prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos, em seu livro, fala da santidade como “dom de Deus” e “resposta do homem a Deus”. Falta esse dom na Igreja do século XXI?
–Miguel De Salis: Creio que não. Não faltam nem o dom nem a resposta. Basta pensar no rastro deixado por pessoas como Madre Teresa, Padre Pio, Maximiliano Kolbe, Piergiorgio Frassati, João Paulo II e tantos outros, por mencionar alguns dos personagens importantes que marcaram a história recente.
–É possível ver a santidade através de alguma notícia publicada recentemente?
–Miguel De Salis: É possível, mas às vezes é difícil de encontrá-la. Algumas notícias mostram feridas, e quando algo está ferido é difícil entender que outras partes do corpo estão sãs, que nem tudo está perdido. Entretanto, sabemos que todos os cristãos aqui na terra devem se converterem a cada dia, e é necessária uma purificação para poder ver a santidade. O Concílio Vaticano II recordava na Lumen Gentium (8) que “a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação”.
–Mas isso justifica o pecado?
–Miguel de Salis: De forma alguma. Todo pecado é uma ação contra Deus e contra sua Igreja. Com certeza, ainda que houvesse somente um caso comprovado de abuso, se trataria de um ato gravíssimo em total contraste com o Evangelho, uma violência tremenda contra um filho de Deus. Não há que ter medo da verdade. Nossa fé é fundamentada por Cristo, não nos homens nem no fato de ter uma vida em que o pecado dos demais não se faz sentir tanto.
–Então, como compreender algumas das acusações dirigidas aos pastores da Igreja que não intervieram a tempo sobre alguns abusos?
–Miguel de Salis: O Catecismo da Igreja (827) recorda que “todos os membros da Igreja, incluindo seus ministros, devem se reconhecer pecadores. Em todos, até o final dos tempos, o joio do pecado se encontra misturado com o bom trigo do Evangelho. A Igreja reúne portanto os pecadores alcançados pela salvação de Cristo, mas sempre em caminho de santificação”. É possível, como tem demonstrado a história, que aqueles que formam a Igreja atuem de forma contrária ao Evangelho, mas há muitos pastores (a Igreja tem mais de cinco mil bispos) que servem aos fiéis com uma dedicação e generosidade únicas. Basta pensar nos bispos presos na China, Vietnã e outros lugares do mundo. Ao invés de fazer a soma de tudo isso, deixe que Deus faça. Creio que isso nos convida a não desanimar.
Diante da experiência contrastante da santidade e do pecado na Igreja, é oportuno revisar experiências parecidas já vividas na história da Igreja e compreendê-las antes de inventar uma nova resposta. Isso supõe olhar ao nosso redor. Você percebe, quase com surpresa, que Deus segue habitando em nosso meio apesar de tudo. E isso tem duas consequências fundamentais.
Em primeiro lugar, nossa esperança não é ingênua nem inconsciente, mas está enraizada na certeza da ajuda de Deus. A segunda consequência é a responsabilidade de todos os fiéis na Igreja, fundada pelo chamado de Deus, a colaborar na missão. Em outras palavras, diante do pecado do outro é necessário responder com santidade e não com outro pecado. E ninguém disse que a resposta santa deve ser sempre passiva. Há espaço para a criatividade humana: os santos eram criativos.
–A Igreja é verdadeiramente santa?
–Miguel de Salis: Tradicionalmente se explica a santidade da Igreja distinguindo dois aspectos. O primeiro é que é objetivamente santo nela: os sacramentos, a Palavra de Deus, a presença de Cristo e do Espírito Santo, a lei moral e todos os demais dons que Deus lhe deu para que realize a missão confiada.
O segundo inclui os frutos da santidade causada pelos dons divinos oferecidos, quer dizer, os santos e a habitual vida na graça de Deus, vivida aqui na terra. Mas essa forma de participar na santidade da Igreja não consegue explicar bem a influência do pecado na Igreja e, portanto, em sua santidade vivida.
–Então, como o senhor explica esses dois elementos nos tempos atuais?
–Miguel de Salis: Sempre haverá um pouco de desordem na vida da Igreja e sempre haverá desafios que esperam uma resposta criativa que requer trabalho e tempo. A vida cristã é assim na terra: existe sempre a Cruz e esta é a porta de entrada ao Céu e à terra novos. Coloco um exemplo: o venerável Newman dizia, depois de estudar a história da Igreja antiga, que atrás de cada Concílio havia sempre uma grande confusão. Ainda existem confusões hoje, e talvez mais amplas através da mídia.
–Parece adequado o comportamento dos sacerdotes em países diversos?
–Miguel de Salis: Olhe o número de sacerdotes que em todo o mundo serve aos fiéis, são cerca de 400 mil. Celebram a missa, fazem catequese, cuidam dos enfermos, ajudam as famílias… O bem não faz ruído nem aparece nos jornais, mas o mal sim.
Basta olhar o número de sacerdotes mortos nesses últimos anos por seu compromisso com as pessoas mais pobres, ou o número de sacerdotes que sofrem perseguição por causa da fé e da defesa dos direitos humanos.
Todavia, é necessário entender que frequentemente as notícias são apresentadas de tal maneira que nos chamam a atenção. E em tempos onde a secularização é tão forte, como agora, a proporção de comportamentos equivocados entre os sacerdotes está nos mesmos níveis, ou menores, que a proporção entre os cidadãos que compõem as sociedades ocidentais.
Isso não exclui que tenham existido casos graves que podem não ter sido tratados adequadamente, e por isso a hierarquia tomou nota e tentou resolver os problemas, pedindo o perdão se necessário.
-Mas não parece que há detrás um comportamento contraditório?
–Miguel de Salis: Claro. Quando experimentamos o contraste em que um cristão faz e o que pretende fazer, encontramos a contradição. Nestes casos é tão contraditório quanto um membro fiel laico como um membro da hierarquia ou um religioso. O dom da liberdade humana pode se dirigir a fazer o bem ou o mal, também enquanto formarmos parte da Igreja, sejamos ou não sacerdotes. Isso não deve assustar, se se tem fé em Deus e não no comportamento dos homens de Deus. Ao mesmo tempo, não devemos renunciar ou se acostumar contra o incentivo ao pecado, porque Deus pediu para nós transmitirmos com nossa vida o amor que ele tem por nós. Seguindo a atitude de Cristo, estamos chamados a responder com a santidade e a conversão na qual Deus nos ajuda com sua graça.
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