Oferecemos, a seguir, o texto da catequese pronunciada pelo Papa Bento XVI durante a audiência geral de quarta-feira, 02 de dezembro, realizada na Sala Paulo VI, dedicada a recolher a herança espiritual de Guilherme de Saint-Thierry.

Em uma catequese anterior, apresentei a figura de Bernardo de Claraval, o “doutor da doçura”, grande protagonista do século XII. Seu biógrafo, amigo e admirador, foi Guilherme de Saint-Thierry, sobre quem falarei na reflexão desta semana.

Guilherme nasceu em Liège (França), entre 1075 e 1080. De nobre família, dotado de uma inteligência viva e de um amor nato pelo estudo, estudou em famosas escolas da época, como a da sua cidade natal e a de Reims. Entrou em contato pessoal também com Abelardo, o professor que aplicava a filosofia à teologia de maneira tão original que suscitava muita perplexidade e oposições. Também Guilherme expressa suas próprias reservas, solicitando ao seu amigo Bernardo que tome posição frente a Abelardo.

Respondendo a esse misterioso e irresistível convite de Deus que é a vocação à vida consagrada, Guilherme entra no mosteiro beneditino de Saind-Nicaise, de Reims, em 1113, e alguns anos depois se converte em abade do mosteiro de San Thierry, na diocese de Reims. Naquele período, estava muito difundida a exigência de purificar e renovar a vida monástica, de torná-la autenticamente evangélica. Guilherme agiu, neste sentido, no interior do próprio mosteiro, e em geral na ordem beneditina. No entanto, encontrou muitas resistências frente às suas tentativas de reforma e, assim, apesar do conselho contrário do amigo Bernardo, em 1135, deixou a abadia beneditina, deixou o hábito preto e colocou o branco, para unir-se aos cistercienses de Signy. A partir daquele momento até sua morte, em 1148, ele se dedicou à contemplação orante dos mistérios de Deus, desde sempre objeto dos seus mais profundos desejos, e à composição de escritos de literatura espiritual, importantes na história da teologia monástica.

Uma das suas primeiras obras se intitula De natura et dignitate amoris (Da natureza e da dignidade do amor). Nela, expressa-se uma das ideias fundamentais de Guilherme, válida também para nós. A principal energia que move a alma, segundo ele, é o amor. A natureza humana, em sua essência mais profunda, consiste em amar. Em definitivo, uma só tarefa é confiada a todo ser humano: aprender a amar, sincera, gratuita e autenticamente. Mas só na escola de Deus esta tarefa se cumpre e o homem pode alcançar o fim para o qual foi criado.

De fato, Guilherme escreve: “A arte das artes é a arte do amor… O amor é suscitado pelo Criador da natureza. O amor é uma força da alma, que a conduz naturalmente ao lugar e ao fim que lhe são próprios”. (La natura e la dignità dell’amore 1, PL 184, 379). Aprender a amar requer um longo e comprometido caminho, que é articulado por Guilherme em quatro etapas, correspondentes à idade do homem: a infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Neste itinerário, a pessoa deve impor-se uma ascética eficaz, um forte controle de si mesmo para eliminar todo afeto desordenado, toda concessão ao egoísmo, e unificar a própria vida em Deus, fonte, meta e força do amor, até alcançar o cume da vida espiritual, que Guilherme define como “sabedoria”. Ao final deste itinerário ascético, experimenta-se uma grande serenidade e doçura. Todas as faculdades do homem – inteligência, vontade, afetos – repousam em Deus, conhecido e amado em Cristo.

Também em outras obras, Guilherme fala desta radical vocação ao amor a Deus, que constitui o segredo de uma vida de êxito e feliz, e que ele descreve como um desejo incessante e crescente, inspirado pelo próprio Deus no coração do homem. Em uma meditação, ele diz que o objeto deste amor é o Amor com “A” maiúsculo, isto é, Deus. Ele é quem se translada ao coração de quem ama e o torna apto para recebê-lo. Dá-se até saciar e de tal modo, que a partir desta saciedade, o desejo não diminui nunca. Este torrencial de amor é a plenitude do homem (De contemplando Deo 6, passim, SC 61bis, pp. 79-83).

Chama a atenção o fato de Guilherme, ao falar do amor de Deus, atribuir uma notável importância à dimensão afetiva. No fundo, queridos amigos, nosso coração está feito de carne, e quando amamos a Deus, que é o próprio Amor, como não expressar nesta relação com o Senhor também nossos sentimentos mais humanos, como a ternura, a sensibilidade, a delicadeza? O próprio Senhor, fazendo-se Homem, quis nos amar com um coração de carne!

Segundo Guilherme, o amor tem outra propriedade importante: ilumina a inteligência e permite conhecer melhor e de maneira mais profunda a Deus e, em Deus, as pessoas e os acontecimentos. O acontecimento que procede dos sentidos e da inteligência reduz, ainda que não elimine, a distância entre o sujeito e o objeto, entre o eu e o tu. O amor, no entanto, produz atração e comunhão, até o ponto em que se dá uma transformação e uma assimilação entre o sujeito que ama e o objeto amado. Esta reciprocidade de afeto e de simpatia permite, por sua vez, um conhecimento muito mais profundo que o oferecido somente pela razão. Isso explica uma célebre expressão de Guilherme: “Amor ipse intellectus est” (o amor em si é princípio de conhecimento).

Queridos amigos, nós nos perguntamos: nossa vida não é precisamente assim? Não é verdade que conhecemos realmente somente a quem e aquilo que amamos? Sem uma certa simpatia, não se conhece ninguém nem nada! E isso vale sobretudo no conhecimento de Deus e dos seus mistérios, que superam a capacidade de compreensão da nossa inteligência: Deus é conhecido quando é amado!

Uma síntese do pensamento de Guilherme de Saint-Thierry se encontra em uma longa carta dirigida aos Certosini de Mont-Dieu, a quem realizou uma visita e que queria alentar e consolar. O beneditino Jean Mabillon, já em 1960, deu a esta carta um título significativo: Epistola aurea (Epístola áurea). De fato, os ensinamentos sobre a vida espiritual contidos nela são preciosos para todos os que desejam crescer na comunhão com Deus, na santidade.

Nesse tratado, Guilherme propõe um itinerário em três etapas: É necessário, segundo ele, passar do homem “animal” ao “racional” para chegar ao “espiritual”. O que nosso autor tenta dizer com estas três expressões? No começo, uma pessoa aceita a visão da vida inspirada na fé com um ato de obediência e de confiança. Depois, com um processo de interiorização, no qual razão e vontade desempenham uma grande função, a fé em Cristo é acolhida com profunda convicção e se experimenta uma harmônica correspondência entre o que se crê e se espera e as aspirações mais secretas da alma, nossa razão e nossos afetos. Chega-se, assim, à perfeição da vida espiritual, quando as realidades da fé são fonte de íntima alegria e de comunhão real e gratificante com Deus. Vive-se somente no amor e para o amor.

Guilherme funda este itinerário em uma sólida visão de homem, inspirada nos antigos Padres gregos, sobretudo em Orígenes, os quais, com uma linguagem audaz, haviam ensinado que a vocação do homem é chegar a ser como Deus, que o criou à sua imagem e semelhança. A imagem de Deus presente no homem o conduz à semelhança, isto é, a uma identificação cada vez mais plena entre a própria vontade e a divina. A esta perfeição, que Guilherme chama de “unidade de espírito”, não se chega com o esforço pessoal, ainda que seja sincero e generoso, porque é necessária outra coisa. Esta perfeição é alcançada pela ação do Espírito Santo, que habita a alma e a purifica; absorve e transforma em caridade todo impulso e todo desejo de amor presente no homem. “Há depois outra semelhança a Deus – lemos na Epistola aurea – que já não se chama semelhança, mas unidade de espírito, quando o homem chega a ser um com Deus, um espírito, não somente pela unidade de um idêntico querer, mas por não ser capaz de querer outra coisa. Dessa maneira, o homem merece converter-se não em Deus, mas no que Deus é: o homem se converte pela graça no que Deus é por natureza”. (Epístola áurea 262-263, SC 223, pp. 353-355).

Queridos irmãos e irmãs: este autor, que podemos definir como o “cantor do amor, da caridade”, ensina-nos a agir em nossa vida segundo a opção fundamental, que dá sentido e valor a todas as demais escolhas: amar a Deus e, por esse amor, amar nosso próximo; somente assim poderemos encontrar a verdadeira alegria, antecipação da bem-aventurança eterna. Introduzamo-nos, portanto, na escola dos santos, para aprender a amar de maneira autêntica e total, para entrar neste itinerário do nosso ser. Como uma jovem santa, doutora da Igreja, Teresinha do Menino Jesus, digamos ao Senhor, também nós, que queremos viver de amor.

E concluo precisamente com uma oração da santa: “Ah, divino Jesus, sabes que te amo sim. O Espírito de amor me abrasa em chama ardente; somente enquanto te amo o Pai atraio a mim. Que Ele, em meu coração, eu guarde a vida inteira, tendo a vós, ó Trindade, como prisioneira do meu amor. Viver de amor é dar, dar sempre sem medida, sem reclamar na vida recompensa. Quem ama nunca em pagamento pensa. Ao coração Divino, que é só ternura em jorro, eu tudo já entreguei! Leve e ligeira eu corro, só tendo esta riqueza tão apetecida: viver de amor”.

[No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:]

Queridos irmãos e irmãs:

Guilherme de Saint-Thierry, amigo e biógrafo de São Bernardo de Claraval, após ter sido abade em um mosteiro beneditino, decidiu tornar-se cisterciense, dedicando-se à contemplação orante dos mistérios de Deus e à composição de escritos de literatura espiritual. Podemos chamar-lo de o “Cantor do amor, da caridade”. Segundo ele, a força principal que move o espírito humano é o amor. A natureza humana, na sua mais profunda essência, está feita para amar. Porém, o homem só consegue realizar este objetiva, sincera, autêntica e gratuitamente, aprendendo na escola de Deus, que é Amor. A vocação do homem é tornar-se como Deus, que o criou à sua imagem e semelhança. Por sua vez, o amor ilumina a inteligência e permite conhecer melhor e de um modo mais profundo a Deus e, em Deus, as pessoas e os acontecimentos. Assim, nós conhecemos realmente apenas as pessoas e as coisas que amamos. A Deus, conhecemo-lo se o amarmos.

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma cordial saudação de boas-vindas para todos. Que a prática do amor a Deus e ao próximo seja o propósito em que encontreis o sentido e o valor para todas as escolhas das vossas vidas. Que Deus abençoe a cada um de vós e vossas famílias! Ide em Paz!

[Tradução: Aline Banchieri. ©Libreria Editrice Vaticana]

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Fonte: Zenit