
No caixão simples, uma urna de zinco revestida de madeira, a tenda da alma do grande Francisco foi semeada no túmulo preparado na Basílica de Santa Maria Maior, fora dos muros do Vaticano. Mais de 250 mil pessoas acompanharam a última despedida. Na celebração das Exéquias, a Palavra de Deus foi depositada sobre o esquife fechado.
Na homilia da Santa Missa, o decano do Colégio Cardinalício, Cardeal Giovanni Battista Re, salientou a força do pontificado de Francisco: “Ele estabeleceu um contato direto com cada pessoa e com as populações, desejoso de ser próximo a todos, com uma atenção especial às pessoas em dificuldade, gastando-se sem medida, em particular pelos últimos da terra, os marginalizados. Foi também um Papa atento àquilo que de novo estava a surgir na sociedade e àquilo que o Espírito Santo estava a suscitar na Igreja”.
Foram cinco mil concelebrantes nas Exéquias, entre bispos e sacerdotes. Duzentos e vinte os cardeais que estavam presentes. Cerca de quarenta delegações de representantes de Igrejas cristãs e de outras religiões presentes. Mais de 160 delegações oficiais de Chefes de Estado e Soberanos. Um sinal de que o legado de Francisco permanece vivo. Sua voz foi ouvida, mas o seu ensinamento continuou a gritar: “Uma Igreja enlameada, em busca dos perdidos. Uma Igreja hospital de campanha, pronta a socorrer”.
Antes do lacre no caixão, na sexta-feira, a mídia do mundo todo comentou os detalhes da simplicidade do velório. Os calçados do Papa não foram trocados, eram os mesmos, gastos, com sinais de quem teve uma vida a caminho. O despojamento do homem que possuía apenas 100 dólares de patrimônio, confirmou sua pregação. Valores de seu salário e outras doações já haviam sido destinados para projetos de uma prisão e um centro de detenção juvenil, que ele sempre visitava em Roma. Francisco continuou dando lições, mesmo com sua morte, como quando, com muito humor, disse que nunca havia visto um caminhão de mudança atrás de um cortejo fúnebre. “Não levamos nada conosco, só o amor que demos”, ensinou Francisco.
A túnica branca, que assumiu em 13 de março de 2013, quando abandonou o nome Jorge Mario Bergoglio e passou a ser apenas Francisco, também não era nova, havia testemunhado os muitos abraços nos mais pobres, nos enfermos, nos marginalizados. Tinha cheiro de ovelhas.
Uma tradição Francisco quis manter, nas regras ditadas para seu sepultamento. A casula deveria ser da cor vermelha, que remete à simbologia do martírio e do fogo do Espírito Santo, dom divino dado aos apóstolos para comandar a Igreja. Já o anel do pescador, símbolo da autoridade do Papa, na versão do pontificado de Francisco não era de ouro. Raramente era usado, guardado apenas para celebrações solenes. Nos dias comuns, ele optava por um anel do tempo de Bispo em Buenos Aires, na Argentina.
A prática do beijo no anel do pescador foi muitas vezes dispensada. A peça foi quebrada depois da morte de Francisco, pelo Cardeal Camerlengo, Kevin Farrel, como manda a tradição. Os restos devem ser usados para a confecção do anel de seu sucessor. Nas mãos do Papa estava também um rosário. Sóbrio. De contas pretas. Sinal de sua grande devoção à Santíssima Virgem Maria.
Para o fechamento do caixão, um véu branco foi colocado sobre o rosto do Papa. A humanidade não verá mais esse rosto. Confiamos que ele é contemplado agora pela Igreja Triunfante, os anjos e santos do céu. O tecido alvo de seda recorda a pureza, a santidade do Pontífice. Quantas vezes nos referimos a ele como “Sua Santidade, o Papa”.
Como Pedro, após a pesca milagrosa, teve de reconhecer que era o Mestre Ressuscitado que o esperava, e fazer sua declaração tríplice de amor, recebendo a chancela de sua missão – para apascentar o rebanho de Cristo – Francisco também teve que amar “mais do que estes”, mais do que todos, porque teve que amar a todos, e expressou isso como a grande mensagem de seu pontificado: “a Igreja é de todos, todos, todos”.
Na tampa do túmulo, apenas o nome, em latim: Franciscus. O mármore utilizado foi escolhido por ele, da região da Ligúrgia, terra de seus avós. A escolha representa mais um pouco de sua simplicidade, já que a pedra não é criada em larga escala, mas por pequenos trabalhadores locais. Na parede do fundo, apenas uma cruz, prateada, no modelo peitoral, usado em seu pontificado, do Bom Pastor. Uma ovelha nos braços e um grande rebanho atrás do Senhor Ressuscitado. Quem passar por ali, facilmente vai entender: aquele Vigário de Cristo não queria ser lembrando como um príncipe da Igreja, mas como um simples pastor.
O Papa que não quis ficar preso no Palácio Papal, escolhendo morar na Casa Santa Marta para conviver com as pessoas, foi sepultado em um local acessível, aberto para visitação permanentemente neste domingo, e com certeza, tornando a Basílica de Santa Maria Maior um ponto ainda mais visitado, nas peregrinações ao Vaticano.
Em uma catequese, o Pontífice partilhou sua confiança na ressurreição: “A morte nunca tem a última palavra. A última palavra pertence à vida, e essa vida é Cristo”. Sua despedida deu-se justamente no Ano Santo da Esperança. O Santo Padre levou a Igreja a meditar: “A esperança cristã é uma esperança de vida eterna. Acreditamos que a vida não acaba, mas se transforma”.
Bruno Maffi
GO Dom Albano – Arquidiocese de Londrina PR
Confira a seguir, na íntegra, a homilia do cardeal Giovanni Battista Re nas Exéquias de Francisco:
Nesta majestosa praça de São Pedro, onde o Papa Francisco celebrou tantas vezes a Eucaristia e presidiu a grandes encontros ao longo destes 12 anos, encontramo-nos reunidos em oração à volta dos seus restos mortais com o coração triste, mas sustentados pela certeza da fé, que nos garante que a existência humana não termina no túmulo, mas na casa do Pai, numa vida de felicidade que não terá ocaso.
Em nome do Colégio Cardinalício saúdo, agradeço a presença de todos vós. Com grande emoção, dirijo uma deferente saudação e um vivo agradecimento aos numerosos Chefes de Estado, aos Chefes de Governo e às Delegações oficiais que vieram de muitos países para manifestar afeto, veneração e estima pelo Papa que nos deixou.
A manifestação popular de afeto e adesão, a que todos assistimos, após a sua passagem desta terra para a eternidade, mostram-nos quanto o intenso pontificado do Papa Francisco tocou mentes e corações.
A sua última imagem, que permanecerá em nossos olhos e em nossos corações, é a do último domingo, Solenidade de Páscoa, quando Papa Francisco, apesar dos sérios problemas de saúde, quis conceder a bênção do balcão da Basílica de São Pedro e depois quis descer nesta praça para saudar, do papamóvel aberto, toda a grande multidão reunida aqui para a Missa de Páscoa.
Com a nossa oração, queremos agora entregar a alma do nosso amado Pontífice a Deus, para que Ele lhe conceda a felicidade eterna no horizonte luminoso e glorioso do seu imenso amor.
Somos iluminados e guiados pela página do Evangelho, na qual ressoou a voz do próprio Cristo quando interpelou o primeiro dos Apóstolos, Pedro: «Pedro, tu amas-me mais do que estes?» (cf. Jo 21, 15). E a resposta de Pedro foi pronta e sincera: «Senhor, Tu sabes tudo, Tu bem sabes que Te amo!». E Jesus confiou-lhe a grande missão: «Apascenta as minhas ovelhas» (cf. 17). Esta será constantemente a tarefa de Pedro e dos seus Sucessores, um serviço de amor na senda do Mestre e Senhor Nosso Jesus Cristo.
Apesar da sua fragilidade nesta reta final e do seu sofrimento, o Papa Francisco escolheu percorrer este caminho de entrega até ao último dia da sua vida terrena. Seguiu as pegadas do seu Senhor, o bom Pastor, que amou as suas ovelhas até dar a própria vida por elas. E fê-lo com força e serenidade, junto do seu rebanho, a Igreja de Deus.
Quando, a 13 de março de 2013, o Cardeal Bergoglio foi eleito pelo Conclave para suceder ao Papa Bento XVI, trazia consigo os anos de vida religiosa na Companhia de Jesus e, sobretudo, vinha enriquecido pela experiência de 21 anos de ministério pastoral na Arquidiocese de Buenos Aires, primeiro como Bispo auxiliar, depois como Coadjutor e de seguida como Arcebispo.
A decisão de adotar o nome Francisco manifestou-se logo como a escolha do programa e do estilo em que queria basear o seu Pontificado, procurando inspirar-se no espírito de São Francisco de Assis.
Papa Francisco conservou sempre o seu temperamento e a sua forma de orientação pastoral, imprimindo de imediato a marca da sua forte personalidade no governo da Igreja, estabelecendo um contacto direto com cada pessoa e com as populações, desejoso de ser próximo a todos, com uma atenção especial às pessoas em dificuldade, gastando-se sem medida, em particular pelos últimos da terra, os marginalizados. Foi um Papa no meio do povo, com um coração aberto a todos. Foi também um Papa atento àquilo que de novo estava a surgir na sociedade e àquilo que o Espírito Santo estava a suscitar na Igreja.
Com o vocabulário que lhe era caraterístico e com a sua linguagem rica de imagens e metáforas, procurou sempre iluminar os problemas do nosso tempo com a sabedoria do Evangelho, oferecendo uma resposta à luz da fé e encorajando-nos a viver como cristãos os desafios e as contradições destes anos cheios de mudanças, que ele gostava de descrever como uma “mudança de época”.
Tinha uma grande espontaneidade e uma maneira informal de se dirigir a todos, mesmo às pessoas afastadas da Igreja.
Dotado de grande calor humano e profundamente sensível aos dramas de hoje, o Papa Francisco partilhou em pleno as angústias, os sofrimentos, as esperanças do nosso tempo e, com uma mensagem capaz de chegar ao coração das pessoas de forma direta e imediata, dedicou-se a confortar e a encorajar.
O seu carisma de acolhimento e de escuta, associado a um modo de se comportar que é próprio da sensibilidade dos nossos dias, tocou os corações, procurando despertar energias morais e espirituais.
O primado da evangelização foi o guia do seu Pontificado, difundindo, com um claro cunho missionário, a alegria do Evangelho, que também foi o título da sua primeira Exortação Apostólica Evangelii gaudium. Uma alegria que enche de confiança e esperança o coração daqueles que se entregam a Deus.
O fio condutor da sua missão foi também a convicção de que a Igreja é uma casa para todos; uma casa com as portas sempre abertas. Várias vezes utilizou a imagem da Igreja como um “hospital de campanha” depois de uma batalha em que houve muitos feridos; uma Igreja desejosa de cuidar com determinação dos problemas das pessoas e das grandes angústias que dilaceram o mundo contemporâneo; uma Igreja capaz de se inclinar sobre cada homem, independentemente da sua fé e condição, curando as suas feridas.
São inúmeros os seus gestos e exortações a favor dos refugiados e deslocados. Constante foi também a sua insistência em agir a favor dos pobres.
É significativa a primeira viagem do Papa Francisco, é significativo que tenha sido a Lampedusa, ilha-símbolo do drama da emigração, com milhares de pessoas afogadas no mar. Na mesma linha se inscreve a viagem a Lesbos, com o Patriarca Ecuménico e o Arcebispo de Atenas, e a celebração de uma Missa junto da fronteira mexicana com os Estados Unidos, por ocasião da sua viagem ao México.
Das suas 47 cansativas Viagens Apostólicas, ficará para a história, de modo especial, a que fez ao Iraque em 2021, desafiando todos os riscos naquele momento. Essa difícil Visita Apostólica foi um bálsamo para as feridas do povo iraquiano, que tanto tinha sofrido com a ação desumana do Estado Islâmico. Foi uma Viagem importante também para o diálogo inter-religioso, outra dimensão relevante – essa – do seu trabalho pastoral. Com a Visita Apostólica a quatro nações da Ásia-Oceânia, em 2024, o Papa chegou “à periferia mais periférica do mundo”.
O Papa Francisco sempre deu centralidade ao Evangelho da misericórdia, sublinhando repetidamente que Deus não se cansa de perdoar: Ele perdoa sempre, seja qual for a situação de quem pede perdão e regressa ao bom caminho.
E por isso ele quis o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, destacando que a misericórdia é “o coração do Evangelho”.
Misericórdia e alegria do Evangelho são duas palavras-chave do Papa Francisco.
Em contraste com o que ele designou por “cultura do descarte”, falou da cultura do encontro, della cultura da solidariedade. O tema da fraternidade atravessou todo o seu pontificado com tons vibrantes. Na sua Carta Encíclica Fratelli tutti, pretendeu reanimar a aspiração mundial à fraternidade, porque todos somos filhos do mesmo Pai que está nos céus. Com força, recordou-nos muitas vezes que todos pertencemos à mesma família humana e que ninguém se salva sozinho.
Em 2019, durante a Viagem aos Emirados Árabes Unidos, o Papa Francisco assinou um documento sobre “a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum”, evocando a comum paternidade de Deus.
Dirigindo-se a homens e mulheres de todo o mundo, na sua Encíclica Laudato si’, chamou a atenção para os deveres e a corresponsabilidade em relação à casa comum.
Perante o eclodir de tantas guerras nos últimos anos, com horrores desumanos e inúmeras mortes e destruições, o Papa Francisco levantou incessantemente a sua voz implorando a paz e convidando à sensatez, convidando a uma negociação honesta para encontrar soluções possíveis, porque a guerra – dizia ele – é apenas morte de pessoas e destruição de casas, destruição de hospitais e de escolas. A guerra deixa sempre – é uma expressão sua – o mundo pior do que estava: é sempre uma derrota dolorosa e trágica para todos.
“Construir pontes e não muros” é uma exortação que ele repetiu muitas vezes, e o serviço da fé como Sucessor do Apóstolo Pedro esteve sempre unido ao serviço do homem em todas as suas dimensões.
Em união espiritual com toda a comunidade cristã, nós estamos aqui em grande número a rezar pelo Papa Francisco, para que Deus o acolha na imensidão do seu amor.
O Papa Francisco costumava concluir os seus discursos e encontros pessoais dizendo: “Não vos esqueçais de rezar por mim”.
Agora, querido Papa Francisco, pedimos-Vos que rezeis por nós e pedimos que, do céu, abençoeis a Igreja, abençoeis Roma, abençoeis o mundo inteiro, como fizestes no domingo passado, do balcão central desta Basílica, num último abraço a todo o povo de Deus, mas também, idealmente, à inteira humanidade, com a humanidade que procura a verdade de coração sincero e segura bem alto a chama da esperança.