Na passagem do Bom Pastor, Jesus diz que Ele veio para dar a vida, para que nós tenhamos vida, e vida em abundância. Vida na língua grega pode ser bios, como a vida física, e zoé que é o vocábulo aqui, a vida real, plena, e até poderíamos dizer eterna. Deus amou tanto o mundo, que enviou seu Filho, não para nos fazer perecer, mas para que tenhamos essa vida, um relacionamento pleno conosco mesmo, com o próximo e com Deus (Cf. Jo 3,16). Por isso, Jesus enfrentou a morte para romper o pecado, que é o salário da morte (Cf. Rm 6,23), e dar o contrário do pecado e da morte, que é a vida, mas não qualquer vida, em abundância. 
 
Abundância aqui é perissos, abundância, que excede toda a conta, mais e mais, como nas passagens, o verbo perisseo: Rm 5,15; 1 Cor 15,58; 2 Cor 4,15. O Nosso Deus é vida plena, é relacionamento pleno e nós fomos concebidos e nascemos, para participar dessa vida divina, participar da vida da Trindade. Por isso, deve sempre ressoar em nossos ouvidos o sentido de nossa vida, porque fomos criados por uma única razão: somos aqueles que “que Deus adquiriu para o louvor da sua glória” (Ef 1, 14b).
 
Fomos um dia concebidos, com um corpo e alma, unos, dado por Deus, e reparemos que o nosso corpo com aparelhos digestivo, respiratório, circulatório, nervoso etc; está equipado com os sentidos para estarmos prontos para o relacionamento. O desenvolvimento do ser humano é feito nessa base relacional. E por isso, a primeira carta de João pode afirmar: “Nisto conhecemos o Amor: ele deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos” (1 Jo 3,16). O nosso conhecimento do amor, não somente intelectual, mas por experiência, é receber a vida que o Senhor Jesus nos deu. E se essa é a razão da vinda do Senhor Jesus (Cf. Jo 3,16), a razão do nosso viver não é diferente, é na entrega para o bem dos irmãos, no encontro e na comunhão, que cumprimos a essência da Palavra de Deus: “De fato, os preceitos: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e todos os outros se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13,9).
 
Nascemos para amar e assim manifestar a nossa essência, crescemos aprendendo cada vez mais a nos entregar. A nossa vocação é essencialmente amar e levar os outros a crescer no amor, e por fim seremos julgados por esse mesmo amor (Cf. Mt 25).  Tudo isso é muito belo tudo isso, não é?! Porém, o pecado entrou no mundo, e os seres humanos fecharam-se em si mesmos, e passaram a querer dominar uns aos outros. Quando no livro da Criação é dito assim à mulher, como uma das consequências do pecado:  “teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” (Gn 3,16), é o verbo mashal, que é dominar, como uma nação domina sobre outra (Cf. Js 12,2), pois esse dominar é consequência do pecado. 
Somos livres, porém marcados pela tendência ao pecado! 
Uma criança vem ao mundo e quer amar e ser amada, é um ser necessitado e que precisa de auxílio para se constituir ser humano e um dia amar. E pode acontecer que esse ser vá recebendo machucaduras, é usado, abusado e desonrado, e assim vai aprendendo que a vida é assim: dominando é que se vive. E ao invés de dar a vida para o outro, esse ser começa a fazer o contrário, ele quer subjugar a vida do outro. Esse processo somente traz tristeza e dor para todos. E será que uma pessoa que age assim é feliz? Obviamente não. Porém a vida vai passando e esse ser humano começa a se fechar em si mesmo. Não conseguindo amar e o efeito também é não ser amado, o relacionamento humano começa a ficar cada vez mais deficitário. E esse ser que era vocacionado a amar e ser amado, se sente fora do mundo e da história, e não vê mais razão de viver, e uma grande tentação começa a surgir é ver a morte como libertadora da vida que não mais se vive.
 
Como quebrar esse círculo vicioso? Como diz a carta aos Hebreus: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para a eternidade!” (Hb 13,9). Para Deus não há tempo, por isso, esse ser humano precisa recomeçar a viver, a criança que há dentro de dele, precisa se encontrar com o Senhor e com os seres humanos e reaprender o amor que não teve, perdoar o passado e tanta dominação que aconteceu. Recomeçar a viver, os laços precisam ser restaurados. Se tudo podemos naquele que nos fortalece (Cf. Fp 4,13), então a graça de Deus pode restaurar o fechamento dessa pequena alma machucada pelas pessoas na sua história. Graça também que coloca pessoas na nossa história para nos ajudar nesse processo de reaprender a viver. E assim, pela ação do Espírito Santo na Graça, voltaremos a ter vida, e vida em abundância, até o dia em que viveremos plenamente na Comunhão dos Santos com o Senhor nosso Deus. Amém!
 
Padre Micael de Moraes, Sjs
Instituto Missionário Servos de Jesus Salvador