Faz parte do equilíbrio entre pessoas e grupos na sociedade o estabelecimento de limites razoáveis entre a liberdade de uns e de outros. Até se repete, de forma adequada, que a minha liberdade vai até onde começa a da outra pessoa. Tudo muito bem organizado! Mais ainda, cresce o clima de reivindicação de direitos, com as maiorias e as minorias que buscam o próprio espaço, a fim de que ninguém fique de fora do concerto que se deseja harmônico. Intrigante é o fato de que sociedades muito organizadas, com tudo bem definido, respeito à ecologia, trânsito bem estabelecido entre pessoas, veículos e ideias, não consigam oferecer-lhes igual realização. Falta algo para que a vida adquira, além dos limites necessários, o horizonte que proporcione felicidade de verdade.
Deus, que entende de vida de gente, por ser Criador e Pai, mostra sua face à humanidade através de um “tempero” inigualável, um amor gratuito, capaz de superar todos os limites, chamado misericórdia, com o qual entra no mais íntimo das pessoas e purifica seus relacionamentos, concedendo de presente o que estas mais procuram. O misterioso é que justamente no mais profundo das dificuldades, crises e falhas dos seres humanos se encontra o caminho da realização. Jesus Cristo, verdadeiro homem e mais humano do que todos, é Deus verdadeiro, com o Pai e o Espírito Santo. Ele é a face humana da misericórdia! Tornou-se pequeno, pobre, obediente, carregou sobre si o peso dos pecados humanos, passou pela noite da morte, ressuscitou e abriu para a humanidade as portas da eternidade. Todas as suas atitudes revelam esta face da misericórdia de Deus. Justamente onde a situação é pior e desesperadora, lá ele entra e liberta. Quando as pessoas se sentem abandonadas e desprezadas, lá dentro é possível, com a presença da graça de Deus, começar a sair de si mesmas, transformando a dor em amor. Quem acolhe seu amor misericordioso experimenta a mudança, mas há de arriscar sua liberdade para vivê-la!
Para conduzir-nos à compreensão dos mistérios do Reino de Deus, Jesus Cristo usou a linguagem das parábolas, comparações tiradas dos fatos da vida e da natureza, com as quais descortina o sentido da existência. Nas chamadas “parábolas da misericórdia” (Lc 15,1-32), um aguçado sentido de humanidade se faz presente, indo ao encontro de situações humanas difíceis e ao mesmo tempo fecundas. Suas atitudes livres desconcertam os interlocutores, pessoas da lei e da organização, ciosas dos direitos e limites de cada grupo na sociedade. Acolher pecadores, infratores, gente que quebra a harmonia da ordem, era demais! Eram pessoas sobre as quais se deveria estabelecer penalidades pesadas e não acolhidas! E Jesus viola estas normas! Para se fazer entender, fala de ovelhas, moeda, filhos! Coisas do dia a dia, mas correspondentes aos valores que norteavam a vida.
Possuir um rebanho até hoje é sinal de boas condições na sociedade. Perder cabeças de gado, por roubo, extravio ou doenças toca no bolso, esta parte tão sensível do ser humano! Pois bem, o pastor da parábola se preocupa com a ovelha tresmalhada, não joga ninguém fora. A ovelha que se identifica com qualquer um de nós certamente aprontou algo para ficar fora do caminho, quem sabe, uma ovelha rebelde! É que cada pessoa humana, para Deus que é pastor a guarda de nossas vidas, vale o sangue de seu Filho amado. A misericórdia toma iniciativa, vai ao encontro e faz festa pelo retorno da pessoa que foi reencontrada! (Cf. Lc 15,3-7).
Dez moedas de prata guardadas, quem sabe, num lenço bem amarrado, escondido debaixo de um colchão! Até segredos podiam estar atrás daquele tesouro, pequeno que fosse para outros, mas significativo. A imagem da casa revirada, para encontrar apenas uma moeda, é magnífica (Cf. Lc 15,8-10). Deus é assim, revira o mundo por causa de cada pessoa que cai. Ele nos leva a sério! Ele gasta com a festa da conversão muito mais do que o valor da moeda perdida!
Enfim, filho, como deveria ser até hoje em toda parte, é bênção! (Cf Lc 15, 11-32) Perder o filho mais novo, jovem desorientado que quer se aventurar pelos caminhos do mundo, dói no mais profundo da alma do pai. Dar a parte da herança talvez tenha sido menos doloroso do que a distância daquele que tinha jogado fora justamente o bem mais precioso, o relacionamento de paternidade e filiação. Deixa de ser humano quem se recusa ao amor em nome da liberdade! O jovem gastador de ontem e de hoje vai ao fundo do poço e sua história se repete diante de nossos olhos.
“A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado ‘agape’. Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objeto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e revalorizado. O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido reencontrado e por ter voltado à vida. Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio (Cf. João Paulo II, Encíclica Dives in misericordia, 6). Na parábola do filho pródigo não é usado, nem uma vez sequer, o termo «justiça», assim como também não é usado no texto original, o termo «misericórdia». Contudo, a relação da justiça com o amor que se manifesta como misericórdia aparece profundamente vincada no conteúdo desta parábola evangélica. Torna-se claro que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso ir além da norma exata da justiça: norma precisa mas, por vezes, demasiado rigorosa” (Dives in misericordia, 5). Trata-se de uma verdadeira revolução nos relacionamentos sociais. Muito além das aparências, vale a realidade do filho amado. O desafio está lançado, para que a convivência humana supere os limites frios do direito e da justiça. Só em Cristo e com ele começará a festa da misericórdia.
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL