Jesus sente que sua “hora” se aproxima, reúne os seus discípulos e manifesta-lhes o último desejo com um gesto que marcará para sempre a história da humanidade: o “lava-pés”. Essa é a dinâmica que revela a novidade do Reino de Deus. “Lavar os pés” dos discípulos é cuidar dos que servem os servos. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
A cena do lava pés narrada pelo evangelista João é rica em detalhes. Mas antes, é indispensável recordar um dado fundamental da fé cristã. O desígnio amoroso de Deus expressou-se, de forma plena, quando o Filho, que “existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo e tomou a condição de escravo, tornou-se igual aos homens” (Cf. Fl 2, 6-7). São Paulo nos recorda que Cristo se abaixou, esvaziando-se de si para se fazer semelhante ao ser humano. Na Última Ceia, Jesus não só se abaixa, mas despoja-se de seu manto e veste-se com o avental, passando a exercer o trabalho que era designado aos escravos: lavar os pés. Diante disso, a repulsa de Pedro: “Senhor, tu me lavas os pés?” (Jo 13,6). Tradicionalmente, naquela época e contexto social, era sinal de acolhimento e gesto cortês, oferecer água para lavar os pés da poeira do caminho, que os servos comumente realizavam. Assim, em Jesus não só vemos o Deus que se abaixa e se esvazia, mas que assume o papel de escravo, de servo. O gesto do lava-pés, revela a mais alta e profunda imagem do serviço. Toda a vida de Jesus foi expressão do lava pés. Jesus fez dela uma constante prática de serviço e doação, preferencialmente aos pobres e abandonados, desde a encarnação até o ápice de seu amor total na cruz. No lava pés, Jesus nos ensina que a força e o poder de Deus não estão na dominação e na grandeza, mas na simplicidade do servir. Jesus propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato.
Aceitar um mestre servo e se fazer servo com ele e como ele, é condição para fazer parte da comunidade cristã. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a revolução de valores e as consequências que isso implica. Mesmo com resistência nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: “Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo” (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Sentar à mesa e servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há espaço para todos, principalmente para os que servem.
O gesto do lava pés não pode ser dissociado de outro ponto importante daquela Ceia: o mandamento do amor. “Amai-vos como vos amei” (Jo 13,34) e depois “ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida” (Jo 15,13). O amor é aqui entendido como a síntese perfeita de toda a nossa fé cristã.
Todos os gestos do lava-pés possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e uma calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado. No corre-corre da vida é urgente reassumir a linguagem dos gestos que se perdem na pressa, na mania de fazer muitas coisas porque outras nos atropelam e nos distraem do essencial. Sendo assim, toda a expressão de serviço, doação, cuidado da vida (CF 2020) é expressão do lava-pés daquela Última Ceia.
Vemos no mundo inteiro o lava pés de Jesus acontecendo nos hospitais, onde os profissionais da saúde, médicos (as), enfermeiros (as), técnicos (as) de enfermagem não medem esforços para cuidar dos doentes, a ponto de colocarem a própria vida em risco. Doam de si mesmos, não por um simples profissionalismo, mas porque acreditam no amor e na defesa da vida. Vemos o lava pés acontecendo nas casas de caridade e de assistência social que acolhem os que estão necessitados de alimentos, roupas, kits de higiene, porque devido a impossibilidade do trabalho, não conseguem renda. Nas famílias que estão cuidando de seus idosos, nos pais que estão tendo tempo para conviver com os filhos, naqueles e naquelas que partilham um pouco do que tem com quem está necessitado; no trabalho daqueles que precisam manter os serviços essenciais da sociedade como agricultores, caminhoneiros, jornalistas, policiais, farmacêuticos, vendedores de mercados, professores, etc. Todos estes estão doando a própria vida, como verdadeiros Profissionais do Reino, para que a Promoção da Dignidade Humana seja uma realidade cada vez mais presente na vida dos filhas e filhas amados de Deus. Rostos anônimos nos dias de hoje, na simplicidade, no silêncio, fazem resplandecer a força do amor. Como nos recordou o Papa Francisco na missa de Ramos do ano de 2020, “a vida mede-se pelo amor”. É a missão, é o sentido último da vida. Ver, aproximar, cuidar e acompanhar, e assim servir do jeito de Jesus, vivendo uma vida “essencialmente samaritana; esses homens e mulheres de Boa Vontade, acolhem ao projeto de Deus e atendem ao chamamento de Jesus: “Também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13, 14).
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Sheila Ferraz
Coordenadora Nacional do Ministério de Promoção Humana