Há poucos dias celebrou-se em Roma uma Missa Solene de Ação de Graças pela publicação do Decreto que reconhece as Virtudes Heroicas do Cardeal vietnamita François-Xavier Nguyên Van Thuân, sexta-feira, 15 de setembro, na Igreja “Santa Maria della Scala”, presidida pelo Cardeal Peter Turkson, Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Na ocasião, foi lido o texto do Decreto, que começa com uma palavra do Cardeal Angelo Amato: “Cair na terra e morrer não é somente o caminho para dar fruto, mas também para salvar a própria vida, ou seja, para continuar a viver! Esta entrega, assumida pelo Servo de Deus François-Xavier Nguyên Van Thuân, expressa com eficácia o percurso de sua vida”. Tive o privilégio de conhecer o Cardeal Van Thuân, desfrutar de sua amizade fraterna e testemunhar  pessoalmente  a santidade regada a simplicidade de sua vida exemplar!
 
No ano Santo do Grande Jubileu de 2000, este admirável servidor da Igreja foi convidado por São João Paulo II a pregar o Retiro Espiritual Quaresmal da Cúria Romana. Quando perguntou ao Papa a respeito do assunto a ser tratado, este lhe disse que apenas falasse de sua vida. Dentre outras peripécias armadas pela Providência divina, Van Thuân esteve encarcerado por treze anos, dos quais nove anos na mais rigorosa solidão. Libertado em 1988 e expulso de seu país, veio a ser Presidente do Pontifício Conselho de Justiça e Paz e criado Cardeal em 2001.
 
No Retiro pregado ao Papa e aos membros da Cúria Romana, já na segunda pregação, assim se expressou: “Abandonei tudo para seguir  Jesus,  porque amo os defeitos de Jesus!” Que ninguém se assuste, pois são na realidade qualidades, mais ainda, virtudes de Jesus. Apenas cito a lista feita pelo Cardeal Van Thuân, para deter-me no último deles, objeto de nossa reflexão: primeiro defeito: Jesus não tem boa memória, pois esqueceu os pecados do  bom ladrão (Cf. Lc 23, 42-43); seu segundo defeito é não saber matemática, pois, para ele, uma ovelha vale o mesmo valor de noventa e nove (Cf. Lc 15,4-7); Jesus desconhece a lógica, pois a mulher da moeda perdida gasta mais com a festa do que o valor da mesma moeda (Cf. Lc 15, 8-10); Jesus é ainda um “aventureiro”, pois na “propaganda de seu produto” promete perseguições  e julgamentos aos seus seguidores (Cf. Mt 5,3-12), e seus discípulos de todos os tempos seguiram suas  propostas.
O Evangelho que a Igreja proclamou no último final de semana nos faz conhecer o Jesus que não entende de finanças nem de economia: “O Reino dos Céus é como o proprietário que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha. Combinou com os trabalhadores a diária e os mandou para a vinha.
 
Em plena manhã, saiu de novo, viu outros que estavam na praça, desocupados, e lhes disse:  ‘Ide também vós para  a  minha  vinha!  Eu pagarei o que for justo’.  E eles foram. Ao meio-dia, às três e ainda às cinco da tarde… Ao anoitecer, o dono da vinha disse ao administrador: ‘Chama os trabalhadores e faze o pagamento, começando pelos últimos até os primeiros!’” (Cf. Mt 20,1-16).
Com a palavra o Cardeal Van Thuân: “Se Jesus fosse nomeado administrador de uma comunidade ou diretor de uma empresa, tais instituições fracassariam e decretariam falência. Como é possível alguém pagar o mesmo salário, seja a quem começa a trabalhar às cinco da tarde, seja a quem começa desde manhã cedo? Trata-se de um descuido? Ou Jesus errou, fez as contas erradas? Não! Ele fez de propósito, porque ‘não tenho o direito de fazer o que eu quero com o que é meu? Ou teu olho é mau porque eu sou bom?’ (Mt 20,15)” (Testemunhas da Esperança, Cidade Nova, 2007, páginas 31-32).
 
Este mesmo Servo de Deus, numa ocasião, comunicou-me  que  viajaria antes do encerramento do encontro de Bispos de que participávamos, com a candura de olhos brilhantes que provocavam conversão: “Devo passar pela Alemanha para abençoar o Matrimônio do filho do meu Carcereiro vietnamita!” Sim, foram numerosas as conversões suscitadas por Deus através de um preso    na solitária! Seus caminhos são diferentes!  Deus nos dê a graça de entendermos a moeda do perdão e da misericórdia, com a qual está pronto a ir ao encontro de todo pecador que assim se reconhece e se lança nos braços do Pai. A lógica de Deus é diferente e desconcerta a todos nós, oferecendo-nos a oportunidade de profunda mudança de mentalidade.
 
O profeta Isaías nos provoca: “Procurai o Senhor enquanto é possível encontrá-lo chamai por Ele, agora que está perto. Que o malvado abandone o mau caminho, que o perverso mude seus planos, cada um se volte para o Senhor, que vai ter compaixão, retorne para o nosso Deus, imenso no perdoar. Pois os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são os meus – oráculo do Senhor. Pois tanto quanto o céu acima da terra, assim estão os meus caminhos acima dos vossos e meus pensamentos distantes dos vossos” (Is 55,6-9).
 
Consequência imediata é a gratidão pela desproporção entre os dons que ele nos outorga – o salário dado por Deus! – e as poucas ou muitas horas trabalhadas. Ele abre as fontes de sua misericórdia com o magnífico exagero que   é próprio de seu modo de agir! É hora de abrirmos os olhos num reconhecimento cheio de gratidão. Depois, cabe-nos ficar contentes com os dons concedidos aos outros, superando a tendência da comparação, ciúme, inveja e julgamento, pois   só Deus conhece o mais profundo de cada coração.
 
Mais ainda! É hora de esbanjarmos misericórdia e perdão, saindo dos estreitos critérios de uma justiça humana limitada, ou apenas a afirmação dos direitos individuais, contrapondo-nos aos outros e competindo com todas as pessoas que de nós se aproximam. Nosso tempo carece de generosidade e liberdade no dom recíproco da caridade. O Senhor nos encontre dispostos a distribuir uns aos outros a abundância de seu amor extremado pela humanidade. Continuemos a contar a mesma parábola (Cf. Mt 20,1-16) com nossa vida.
 

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Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL