“Então Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra.’ Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. (…) Deus contemplou toda a sua obra e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia.” (Gn 1, 26-27.31)
O primeiro homem não só foi criado bom, mas também foi constituído em uma amizade com o seu Criador e em uma tal harmonia consigo mesmo e com toda a criação que o rodeava, que só serão superadas pela glória da nova criação em Cristo.
Interpretando de maneira autêntica o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, a Igreja ensina que os nossos primeiros pais Adão e Eva foram constituídos em um estado de “santidade e de justiça original”. Esta graça diante da santidade original era uma “participação da vida divina”.
Pela irradiação desta graça, todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas, o homem não deveria nem morrer, nem sofrer. A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher e, finalmente, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação constituíam o estado denominado “justiça original”.
O “domínio” do mundo que Deus havia outorgado ao homem desde o início realizava-se antes de tudo no próprio homem como domínio de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência (cf. 1Jo 2, 16) que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrestres e à autoafirmação contra os imperativos da razão.
O sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus o colocar no jardim. Lá vive “para o cultivar e o guardar” (Gn 2, 15): o trabalho não é uma penalidade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível.
É toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo desígnio de Deus, que será perdida pelo pecado dos nossos primeiros pais. (CIC 374-379)
Em nossa experiência cristã, muitas vezes ouvimos falar sobre o pecado original. Aprendemos que Adão foi o responsável pela perda da intimidade de todo o gênero humano com Deus. Vemos a nossos primeiros pais apenas como os culpados pela desobediência. Esta visão limitada influencia a maneira como vemos a natureza do próprio Homem. Muitas pessoas que vivem a realidade do Espírito passam a ver sua humanidade como um peso, um fardo a carregar durante a ‘travessia terrestre’. Para compreender o papel e principalmente o valor cristão de nossa humanidade, é preciso resgatar o plano de Deus para esse Homem, antes da queda.
A Palavra nos conta que Deus desejou, planejou e criou o Homem. E o fez conforme Sua vontade. Nada Lhe escapou. A bondade e o Amor do Pai pelo Homem o fizeram desta forma.
O Catecismo ainda nos ensina: “De todas as criaturas visíveis, só o homem é capaz de conhecer o seu Criador; ele é a única criatura na terra que Deus quis em si mesma; só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e o amor, a vida de Deus. Foi para este fim que o homem foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua dignidade” (CIC 356). Podemos dizer que o maior presente de Deus ao homem é a sua própria humanidade. Todos os outros valores dados ao homem pelo seu Criador, como a vida, a liberdade, o amor, giram em torno da sua humanidade. Apenas ao gênero humano foi dada tal dignidade. Como exemplo, citamos: uma árvore tem vida, mas, dependendo da situação, pode ser cortada; um animal tem vida, mas em alguns casos, precisa ser sacrificado. Só a vida humana não pode ser ameaçada em nenhuma circunstância. Toda a vida é valiosa, mas a do ser humano é mais ainda. “O homem na verdade não se engana quando se reconhece superior aos elementos materiais, e não se considera somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana. Com efeito, por sua vida interior, o homem excede a universalidade das coisas. Ele penetra nessa intimidade profunda quando se volta ao seu coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações, e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus decide a sua própria sorte.” (GS 14, 2)
Desta forma é preciso entender que o Amor paternal de Deus está sobre o gênero humano desde a criação e nunca se afastou dele. E este Amor se derrama justamente dessa forma porque somos ‘gente’, por que somos seres humanos. Diz o Eclesiástico: “Que raça é digna de honra? A raça dos homens” (Eclo 10, 19).
Santa Catarina de Siena orava: “Que motivo vos fez construir o homem em dignidade tão grande? O amor inestimável pelo qual enxergastes em vós mesmo a vossa criatura e vos apaixonastes por ela; pois foi por amor que a criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de degustar o vosso Bem eterno” (Dial. 4, 12). E São João Crisóstomo: “Quem é, pois, o ser que vai vir à existência cercado de tal consideração? É um homem, grande e admirável figura viva, mais precioso aos olhos de Deus do que a criação inteira: é o homem, é para ele que existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação, e é à salvação dele que Deus atribuiu tanta importância, que nem sequer poupou seu Filho único em seu favor. Pois Deus não se cansou de tudo empreender para fazer o homem subir até ele e fazê-lo sentar à sua direita.” (Serm. In Gen. 2, 1).
Quando o Senhor criou a humanidade, tinha um projeto, um sonho. É disso que nos fala o Novo Catecismo: “(…) Adão e Eva foram constituídos em um estado de ‘santidade e justiça original’”. A santidade é a participação da vida divina. A justiça é a harmonia do Homem com Deus, com a Mulher, com toda a criação e consigo mesmo. A harmonia consigo mesmo é o autodomínio. Esse é o projeto de Deus para o Homem. Quando vem a queda, Deus não desiste de seu projeto. Com a saída de Adão e Eva do Paraíso, tem início o esforço do Pai para recuperar seus filhos (cf. Gn 3, 15).
A queda de Adão e Eva não é uma consequência de sua humanidade, antes o é do mau uso da liberdade, do livre arbítrio concedido por Deus. A queda não acontece porque Adão é um ser humano, mas porque não soube obedecer a Deus e deixou-se levar pelas seduções do Mal. Desde então pesa sobre o gênero humano o pecado original. Mas “onde abundou o pecado, superabundou a Graça” (Rm 5, 20). Glória a Deus pela sua misericórdia! O que é preciso entender é que o Senhor não criou o Homem com tendência ao pecado, porém esta tendência ocorre pela marca do pecado original. Mas o Senhor não permitiria que sua criatura mais querida permanecesse exilada do Paraíso eternamente. “O que era impossível à Lei, visto que a carne a tornava impotente, Deus o fez. Enviando, por causa do pecado, o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado, condenou o pecado na carne, a fim de que a justiça, prescrita pela Lei, fosse realizada em nós que vivemos não segundo a carne, mas segundo o espírito (Rm 8, 3-4).
Na cruz de Cristo, o Pai resgata para nós o que Adão perdera. O Senhor nos devolve o ingresso à intimidade de Deus. E isso vale também para o nosso corpo, para nossa humanidade inteira, porque, na pessoa de Jesus Cristo, o gênero humano é devolvido à sua plenitude. A pessoa de Cristo eleva a pessoa humana às origens, antes da queda. Glória ao Senhor por isso! “Convém que façamos festa porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado!” (Lc 15, 23-24). O Pai conquistou para nós, através de Seu Filho, a possibilidade de vivermos novamente para o Seu sonho para a humanidade. O Novo Adão nos eleva ao que verdadeiramente somos: imagem e semelhança de Deus.
Com tudo isso, entendemos o valor que o Pai dá à nossa humanidade. Não é à toa que, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, o Magistério nos ensina: “Corpo e alma, mas realmente uno, o homem, por sua própria condição corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor. Não é, portanto, lícito ao homem desprezar a vida corporal, mas, ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à ressurreição no último dia. Mas, vulnerado pelo pecado, o homem sente as revoltas no corpo. Portanto, a própria dignidade do homem pede que ele glorifique a Deus, em seu coração, não lhe permitindo servir às más inclinações do coração” (GS 14, 1).
O pecado não é consequência de nossa humanidade, mas da concupiscência que habita em nós. Nossa humanidade é muito mais do que nosso pecado. Vencida a concupiscência, temos o Homem Pleno, cheio do Espírito Santo, conformado a Cristo, com quem crucificamos a carne para viver no Espírito. “Ora, se Cristo está em vós, o corpo em verdade está morto pelo pecado, mas o Espírito vive pela justificação. Se o Espírito Daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, também dará a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 10-11). Alegre-se, pois, irmão, porque não fomos abandonados aos caprichos das nossas paixões. Antes fomos investidos da força do alto para elevar essa humanidade à “estatura de Cristo”.
Portanto, irmãos, nossa humanidade deve ser cultivada e não negada. Nossa ascese, nossa vida de oração, não pode ter por objetivo negar o que somos, o modo como fomos feitos pelo Criador. Antes, nossa caminhada deve buscar elevar essa humanidade ainda mais, assemelhando-a cada dia mais ao Cristo Senhor nosso. Ele veio “para que as ovelhas tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10, 10). Isso significa viver em plenitude todas as vocações, chamados e aptidões. “Onde Deus te semeou é preciso florescer”, era o canto de Santa Teresinha. Dentro de cada homem há a semente do Reino, os talentos para construí-lo. Esses talentos se traduzem primeiramente nos nossos dons infusos, aqueles naturais: o gosto pelo esporte, pela leitura, pela natureza, por matemática ou por ciências, a facilidade para memorizar coisas, para cantar, o desejo de estudar, a carreira escolhida etc. Depois vêm os carismas e dons de serviço à Igreja. É preciso multiplicar todos esses dons, cultivá-los. Jamais enterrá-los (cf. Mt 25, 14-30).
Muitas vezes vemos irmãos de caminhada, abrasados pelo calor do Senhor, que, talvez por causa de direcionamentos equivocados, decidem negar tudo o que são, identificando nisso a conversão ‘radical’. Com o tempo, esse comportamento, não raro, desabrocha em frutos de amargura, frustração e rancor contra o próprio Senhor. A árvore se conhece pelos frutos, diz a Palavra. A verdadeira conversão liberta, não castra. Muitos chegam até a abdicar dos seus próprios sonhos, dos desejos mais íntimos em relação ao futuro. Não percebem que eles foram plantados pelo próprio Deus Sonhador em seus corações. Cada sonho do Homem é um pequeno pedaço do Sonho do Pai. Jesus não veio para condenar, mas para salvar; não veio para negar, mas para transformar. Converter-se implica em abandonar o pecado e não a natureza humana criada por Deus.
É vital, para o Reino e para o indivíduo, que a humanidade de cada um seja resgatada. O Senhor não nos chamou do pó para sermos anjos. Chamou-nos a sermos Humanos! Fazendo isso, estaremos aproximando-nos mais e mais do Sonho de Deus. E é assim que Deus nos ama: com o Amor de Pai, que conhece profundamente o filho, a quem gerou no mais íntimo do seu Ser e a quem conhece antes mesmo do nascimento. O Pai te conhece, sabe dos teus anseios e de tuas necessidades. Que nossa alma não se atemorize diante de nossa humanidade, antes saiba ser esse o lugar privilegiado da manifestação do Amor do Pai.
QUIROGA, Aldo Flores e FLORES, Fabiana Pace Albuquerque. Práticas de Vida e Relacionamento – Ministério Jovem RCCBrasil. Módulo Serviço – Apostila I. 2ª edição.
Siglas:
CIC – Catecismo da Igreja Católica
GS – Constituição Pastoral Gaudium et Spes
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