Na maioria de nossas grandes cidades, que acabam se tornando metrópoles, avoluma-se cada vez mais o número de veículos de todo tipo. As soluções passam por pedágios, rodízios, construção de vias alternativas, fiscalização mais rigorosa, multas. No entanto, todas as boas regras de trânsito vêm a ser úteis e eficazes quando os motoristas e transeuntes as levam a sério. Aliás, vale para toda a convivência social a constatação de que temos leis que beiram à perfeição, mas não são obedecidas pelos seus destinatários, gerando exasperação de tantos, irritados que ficam com a convivência de tal modo comprometida.

Mais exigentes e prementes são as outras regras de trânsito, as que regulam o relacionamento interpessoal, que inclui a escuta, o saber falar e a atenção. Em seu contato com as pessoas, Nosso Senhor Jesus Cristo, fazendo-se um com a humanidade, desceu aos níveis mais ínfimos da vida humana, vindo inclusive a ser considerado um malfeitor, ainda que fazendo o bem e apenas o bem a todos os homens e mulheres. O trânsito entre pessoas e grupos comporta o “tráfico”, num sentido aqui positivo, de amor que vai e vem, na superação de distâncias e das barreiras edificadas pelo egoísmo humano.

Jesus se encontra em viagem, e era preciso passar pela Samaria. Está cansado, perto do poço de Jacó (Jo 4, 5-42), numa cidade chamada Sicar. Seu relacionamento com uma mulher indica o roteiro para quem quer chegar ao coração das pessoas, possibilitando-lhes oferecer o melhor de si mesmas. Judeus e Samaritanos tinham raízes comuns e divergências seculares, que comprometiam a hospitalidade e tornavam as pessoas e grupos reciprocamente odiosos. Num ambiente judaico, a parábola do bom samaritano (Cf. Lc 10, 25-36) deve ter soado mal, pois não se podia pensar em alguém da Samaria que ganhasse tal qualificativo. E Jesus estabelece a comunicação com uma mulher, e esta era samaritana e de comportamento suspeito. A regra é superar preconceitos e julgamentos. Dá para falar com todo mundo. E a conversa pode começar com um pedido de água para beber, ou com as eventuais perguntas sobre o tempo, com a pessoa sentada ao nosso lado num coletivo!

A conversa do cristão não precisa ser um sermão, nem carregada de lições de moral, num mundo diversificado como o nosso. Jesus levou o assunto para frente de acordo com o ritmo da própria mulher samaritana. Água, pote, distância, cansaço. Tudo sem qualquer resquício de julgamento! Depois, quando aparece a oportunidade para dizer quem ali se encontrava, o portador da água viva, muda o tom e se estabelece um salto qualitativo no relacionamento. Sair da superficialidade, aproveitando os temas corriqueiros tratados ao pé da fonte, para tomar consciência de que todas as pessoas têm um nível mais profundo a ser conhecido e valorizado. Ninguém seja julgado incapaz de olhar nos olhos de Jesus, para descobrir ali o espelho de sua vida. Não se trata de capacidades intelectuais ou de relações sociais bem desenvolvidas. É questão de vida, pois todas as pessoas carregam em si a sede de água vida, que só vem a ser saciada por Deus. Só consegue entender isso quem acredita profundamente na pessoa humana e em sua dignidade. Aqui também Jesus Cristo é mestre inigualável, além de ser o verdadeiro poço da água viva da graça, com a qual poderemos nos aproximar de seu modo de agir.

Continua nossa escola de trânsito! Um bate-boca na rua, por causa de uma imprudência ou de um acidente, não leva a nada! Assim as discussões religiosas tão comuns, até com as cartas marcadas, mais para armadilhas do que perguntas. A interlocutora de Jesus quer discutir, mas Ele conduz tudo a um outro patamar, aquele em que a vida é mais importante, fazendo com que a mulher samaritana perceba tratar-se de um profeta e descobre que é mais do que um profeta. Profeta é aquele que empresta sua boca para Deus falar. Mais do que um profeta porque é o Messias esperado, aquele que faz conhecer todas as coisas.

Jesus não pediu documentos à Samaritana! Agora com letra maiúscula, porque virou nome! Apenas pediu que chamasse seu marido. Aquela que tivera tantos não conseguiu jogar fora sua dignidade, agora colocada em plena luz, quando o processo de comunicação é repicado, pois corre à cidade, nova evangelizadora, para dizer a todos: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?” Contato direto com Jesus suscita missão! O resultado é que as pessoas foram ter com o Senhor: “Já não é por causa daquilo que contaste que cremos, pois nós mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo”. Experiência do amor de Deus, consciência da situação humana, descoberta de Jesus como Salvador e Redentor, fé e conversão, ação do Espírito Santo, água viva do verdadeiro poço, novas relações em comunidade, com a presença de Jesus entre os que vivem novas relações fraternas. É o ciclo do anúncio querigmático de Jesus Cristo que se repete e se amplia, com samaritanos e todos os povos, até os confins da terra.

Os discípulos de ontem e de hoje aprendam a olhar para os campos dourados para a colheita da fé. Jesus, aquele que se alimenta da vontade daquele Pai que o enviou, quer envolver-nos no projeto de um mundo renovado. Não encontre o Senhor resistências naqueles que foram marcados pelas águas do Batismo e ali lavados pelo seu Sangue Redentor, para se tornarem, por sua vez. Daqueles que receberam o Espírito Santo, brotem também rios de água viva (Cf. Jo 7, 37-39).

Em tempos de Campanha da Fraternidade, desejamos que o infame tráfico criminoso de pessoas, que viola a dignidade fundamental de todas as pessoas humanas, seja superado pelo trânsito de amor recíproco, desencadeado por Jesus Cristo. A nós, cabe não interromper o fluxo, permitindo que os sinais se abram. Todas as pessoas que se encontrarem conosco encontrem o caminho que conduz àquele que tem sede de nossa fé e pode oferecer a água viva!

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Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL