“Por sua vida interior o homem excede a universalidade das coisas. Ele penetra nesta intimidade profunda quando se volta ao seu coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações, e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus, decide sua própria sorte” (GS 14).
Cada um de nós é uma obra maravilhosa e única das mãos do Pai.
O que somos não se define pelo que temos ou pelas funções que exercemos na sociedade. Ao contrário, onde quer que estejamos, o que quer que façamos, mantemos nossa personalidade e nossa individualidade. Isso porque o que nos define como pessoas não é o que produzimos, mas sim como experienciamos e percebemos cada situação que o Senhor nos permite viver a cada dia, transformando tudo isso em vida.
Em suma, uma pessoa não se define pelo que tem ou faz, mas sim pela sua forma de ser. Por exemplo, cada um perceberá esse mesmo texto de forma diferente e dele extrairá conclusões distintas, porque cada ser é único em suas características, valores, habilidades etc.
Assim, para conhecer alguém, necessitamos investigar coisas tais como o que ama, o que odeia, o que valoriza, o que despreza, aquilo com o que se compromete etc. Ou seja, a forma como sente e interpreta cada experiência vivida.
O “eu verdadeiro” de cada um de nós encontra-se nas manifestações de sua personalidade em meio à correria do dia-a-dia. Está em constante processo de transformação, pois vai se construindo e aperfeiçoando através das experiências vividas.
Ressalte-se que isso deve ser um motivo de grande júbilo para os Cristãos, uma vez que cremos na vitória e no amor do Senhor que nos acompanham todos os dias e nos capacitam a extrair o melhor de cada experiência de vida, mesmo das mais doloridas.
É motivo de alegria o fato de a vida não ter sido previamente determinada, pois, desta forma, não somos obrigados a resignar-nos com o estado em que ela se encontra. Somos chamados a ir além.
Há, portanto, um caminho a ser trilhado, que é construído por cada um a cada dia, a partir das situações que o Senhor nos permite vivenciar. Por exemplo, quando decidimos por seguir em frente diante de um grande desafio, estamos construindo um rumo para nossa vida. Da mesma forma o estamos fazendo, quando nos deixamos dominar pelo medo e não enfrentamos tal desafio. As duas opções demonstram escolhas que determinam a construção da vida e da personalidade. É importante saber que, sejam quais forem as decisões tomadas ao longo da vida, o Senhor sempre acompanha a cada filho e sempre estará a seu lado, fiel e justo. Afinal, foi escolha de sua divina vontade que tivéssemos livre arbítrio para decidirmos nosso próprio caminho, pois, como ensina o Catecismo, “por sua vida interior o homem excede a universalidade das coisas. Ele penetra nesta intimidade profunda quando se volta ao seu coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações, e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus, decide a sua própria sorte” (GS 14). Assim, se ele nos ama a ponto de nos permitir a liberdade de escolha, confiemos que, mesmo quando julgamos termos tomado o rumo errado, na contramão do que nos parecia ser a vontade Dele, ainda assim Ele nos ama e auxilia. Isso porque Ele nos concedeu o livre arbítrio como uma enorme graça, não como um jugo que nos deixaria a mercê dos nossos próprios erros sempre. O Amor e a Misericórdia de Deus excedem a tudo.
Vivemos em uma sociedade capitalista de consumo, mas sabemos que a ela não pertencemos: somos cidadãos do Reino (Jo 17, 16). Devemos, pois, buscar a inserção satisfatória nessa sociedade, mas não podemos adotar os critérios por ela oferecidos para avaliarmos a nós mesmos e aos outros. Não. O valor do homem está na dignidade de ser pessoa criada e amada por Deus. Todos igualmente dignos e amados pelo Pai, independentemente do que produzamos ou das riquezas que acumulemos, pois “o homem vale mais pelo que é do que pelo que tem” (GS 35).
Um relacionamento consigo próprio que esteja nos moldes do plano de Deus é aquele no qual o indivíduo conhece a si próprio e se contempla como obra perfeita nas mãos do Pai, tal qual vemos expresso por Maria no Magnificat: “O Senhor fez em mim maravilhas” (Lc 1, 49).
Para tanto, é preciso investir sempre no processo de transformação diário, reavaliar as próprias atitudes, estar atento aos próprios sentimentos a fim de conhecer sempre mais a própria personalidade e os próprios limites.
Além de aprimorar-se no autoconhecimento, é urgente buscar, a cada dia, conhecer mais íntima e profundamente a pessoa de Jesus Cristo, segundo o que a Mãe Igreja nos ensina: “Todo aquele que segue a Cristo, o homem perfeito, torna-se mais homem” (GS 41).
É impossível cumprir a própria vocação sem conhecer-se a si próprio e ao Senhor. Por exemplo, quem não conhece íntima e profundamente a pessoa do Senhor, Seu plano de Amor poderia achar que Ele imporia uma vocação totalmente contrária aos seus interesses e aptidões e que vivê-la seria um eterno martírio. Ou, por outro lado, quem não conhece profundamente a si mesmo poderia deixar de seguir uma vocação concedida por Deus por achar-se incapaz ou indigno. O cumprimento real da vocação está em ser plenamente o ser humano criado e amado por Deus Pai.
Se o Pai, que é perfeito, alegrou-se com a obra de Suas mãos quando nos criou, conforme nos conta o livro do Gênesis, como poderíamos nós também não nos alegrarmos?
Alegrar-se consigo mesmo não significa ser orgulhoso ou ignorar as imperfeições e pecados. Ao contrário, significa enfrenta-los, cientes dos próprios limites e da vitória de Cristo. Se nosso Rei é Aquele que venceu até mesmo a morte, devemos, pois, ter coragem e ousadia para superar os obstáculos rumo à plenitude de vida e à santidade.
O júbilo com nossa própria pessoa implica no desenvolvimento de uma autoestima saudável, equilibrada e madura. Tê-la é uma grande graça de Deus em nossas vidas. Talvez essa graça seja tão importante quanto a da conversão, vez que sem autoestima não somos capazes de amar nem a Deus e nem aos irmãos. Como toda a graça, sua concessão vem por liberalidade do Pai. Mas, como nos ensina a teologia de Santo Tomás de Aquino, “a graça supõe a natureza e leva-a à perfeição”. Por isso, além de clamar insistentemente pela graça, devemos concorrer para que ela ocorra com algumas atitudes, das quais trataremos a seguir, as quais visam a dispor a alma para o recebimento dessa graça.
Na maioria das pessoas, o grau de autoestima depende do quanto os outros as apreciam. Isso acaba gerando inconstância, posto que, dependendo de cada situação ou ambiente, tais pessoas sentir-se-ão tão bem ou mal consigo mesmas. Outro efeito do atrelamento da autoimagem à opinião alheia se reproduz no fato dessas pessoas viverem permanentemente tentando agradar, ou temendo desagradar aos outros. Há ainda outro problema decorrente do desequilíbrio da autoimagem, o qual consiste em permitir que ela determine nosso valor como ser humano.
O cristão que caminha para o amadurecimento humano e para a santidade deve exercer um forte trabalho interior para que a situação acima descrita não tenha lugar em sua vida. Devemos ser cientes do nosso valor e dignidade que emanam do simples fato de sermos pessoas! Além disso, se é para basearmos nossa autoimagem na opinião alheia, que seja na opinião de Deus, que tanto nos aprecia, pois como Ele próprio diz: “Nada temas, pois eu te resgato, eu te chamo pelo nome, és meu… Dou o Egito por teu resgate, e a Etiópia e Sabá em compensação. Porque és precioso aos meus olhos; porque eu te aprecio e te amo, permuto reinos por ti, entrego nações em troca de ti” (Is 43, 1.3-4).
Todos somos dignos, filhos amados e apreciados do Pai perfeito! Temos um nome que nos identifica. Somos distintos uns dos outros, obras únicas das mãos do Pai! Nada pode arrancar de nós essa dignidade por Ele conferida. É sob esse prisma que devemos encarar a vida e a nós mesmos, pois, como ensina Nossa Mãe, no Catecismo: “Deus chama a cada um por seu nome. O nome de todo homem é sagrado. O nome é o ícone da pessoa. Exige respeito, em sinal da dignidade de quem o leva” (CIC 2158). Exijamos, pois, o respeito que merecemos e iniciemos a partir de nós mesmos. Quantas vezes não dizemos coisas más a nosso próprio respeito, muitas delas até mesmo nos autoamaldiçoando, com frases tais quais “eu não presto mesmo”, “tinha que ser comigo, eu sabia, para mim nada dá certo” etc.? Ora, respeitemos nosso nome e nossa dignidade de pessoas e vivamos na bênção, crendo na Maravilha que somos!
Porém, apesar de dignos e obras perfeitas das mãos do Pai, temos limitações. Devemos aceita-las com vistas ao desenvolvimento de uma autoestima apropriada.
Somos limitados pelo fato de sermos criaturas, de forma que tudo o que temos nos foi dado pela graça. Também somos limitados porque nem sempre desenvolvemos todo o potencial que temos e, o que é pior, frequentemente não fazemos o bem que queremos, mas o mal que não desejamos (Rm 7,19).
Contudo, aceitar tais limitações não significa, de forma alguma, nos conformarmos com os defeitos e pecados que carregamos e assim sermos menos diligentes na busca do amadurecimento e da santidade. Significa, ao contrário, nos utilizarmos do conhecimento de tais limites como arma na luta contra o pecado e pela plenitude de vida requer elevação da autoestima.
O conhecimento e a aceitação dos próprios limites tornam-se armas de combate, pois o autoconhecimento é importante para que tenhamos domínio próprio e não nos deixemos conduzir apenas pelos sentimentos. Tal fato seria perigoso, pois, na medida em que os sentimentos nos guiam sempre para o que parece agradável e repelem o que parece desagradável, caminhar por eles guiado compromete a santidade e, por via de conseqüência, a felicidade.
Por isso, nossos impulsos devem ser submetidos ao Espírito santo, ao intelecto e à força de vontade, De submetê-los somos capazes desde a criação pois “Deus criou o homem dotado de razão e lhe conferiu a dignidade de uma pessoa agraciada com a iniciativa e domínio de sues dons” (CIC 1730).
Entretanto, é importante salientar que o autodomínio e a auto-estima saudável são processos nos quais devemos investir diurnamente. O Senhor nos deu todas as ferramentas necessárias para tanto. Cabe, pois, a nós colocá-las para trabalhar.
O primeiro passo para tanto é tomar a decisão. Não podemos esperar sentir que nos amamos e nos aceitamos. Devemos antes nos decidir a isso e convencer nosso coração. Através da fé e da razão podemos nos convencer de nosso incomparável e incorruptível valor enquanto pessoas humanas e filhos amados de Deus e a partir daí ir buscando a transformação dos sentimentos negativos.
Todavia, tal decisão se faz acompanhar de luta espiritual e de intensa batalha interior para evitarmos que os sentimentos negativos e a opinião alheia assumam o controle de nossa autoimagem. Lutamos sim, afinal “o homem não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxilio de graça de Deus” (GS37). Temos, porém, total certeza da vitória, uma vez que em Cristo somos mais que vencedores!
Mas, apesar da certeza da vitória final, durante o processo de amadurecimento humano, falhamos em algumas batalhas em virtude de nossas limitações. Por isso, cabe aqui uma breve reflexão acerca de como lidar com tais limitações e com as aparentes derrotas que sofremos no dia-a-dia.
Várias pessoas têm grandes dificuldades na aceitação de falhas e limitações, seja em si próprias ou nos outros. Boa parte dessa dificuldade é resultado do orgulho negativo advindo da imagem infundida em nós, através da idéia de que falhar é inaceitável e vergonhoso; apenas a perfeição e a santidade absoluta são aceitáveis. Ora, devemos sim buscar a perfeição e a santidade para sermos prefeitos como nos pais é perfeito (Mt 5, 48). Contudo, devemos fazê-lo cientes de que a santidade também implica em saber lidar com as quedas e tropeços inerentes ao caminhar humano. Caso contrário, teremos o desenvolvimento da autoestima muito prejudicado e nos tornaremos indivíduos extremamente críticos de si mesmos e de diminuto senso de valor.
Outra conseqüência proveniente da falta de aceitação das folhas e limitações é o crescente sentimento de culpa que nos domina após as quedas. Reconhecer as faltas cometidas e delas arrepender-se é um dever e uma graça divina. Porém, não podemos transformá-la em desgraça, deixando-nos aprisionar pelo sentimento de culpa, pois maior que nossa falha é a misericórdia do Senhor e, conforme nos ensina o evangelista, “Deus é maior do que nossa consciência e conhece todas as coisas” (1Jo 3,20).
É natural que, ao pecarmos, nos sitamos envergonhados perante Deus, assim como Moisés tirou as sandálias e cobriu o rosto em face da santidade divina; ou assim como Pedro disse: “Ai de mim que sou pacador” (Lc 5,8). Porém, abandonemos a culpa e confiemos na misericórdia, uma vez que “porque Deus é santo pode perdoar ao homem que se descobre pecador diante Dele” (CIC 208). Ademais, a igreja nos ensina que “é preciso distinguir entre o erro, que deve ser sempre rejeitado, e o errante, que conserva, todavia, a dignidade de pessoa. Só Deus é juiz e escutados dos corações. Por isso, Ele nos proíbe de julgar sobre a culpa interior de quem quer que seja” (GS 28). Ressalte que, se há proibição expressa ao julgamento de culpa de quem quer que seja, nela está incluída a nossa própria culpa, que deve também ser lançada sobre a cruz redentora de Cristo!
Assim, devemos estar atentos para o fato de que o caminhar para um relacionamento santo consigo mesmo implica num processo de desenvolvimento de uma autoestima equilibrada, a qual deve pautar-se pela dignidade de ser humano, conferida por Deus a cada homem. Para tanto, temos que aceitar nossas limitações e falhas, vencendo-as, pouco a pouco, com muito trabalho interior e graça divina, caminhando para a plenitude de vida. Saliente-se que, nesse processo, não podemos nos deixar paralisar pelo sentimento de culpa, mas sim confiar na misericórdia. Para tanto, louvemos a Deus por ter colocado à nossa disposição o sacramento da confissão, vez que: “ a finalidade e o efeito desse sacramento é a reconciliação com Deus. Os que recebem o sacramento da penitência com o coração contrito e disposição religiosa, podem usufruir a paz e tranqüilidade da consciência, que vem acompanhada de uma intensa consolação espiritual” (CIC 1468).
Além da culpa, há outros fatores que obstam nossos passos rumo à autoestima positiva. Trata-se de feridas em nossa afetividade e de carências que nos cegam e impedem que vivamos plenamente o mandamento de amar a Deus sobre todas coisas e ao próximo como a nós mesmos (cf. Mt 22, 37-40).
As carências são adquiridas no decorrer da vida, quando não recebemos amor suficiente. As feridas afetivas provêm de experiências dolorosas. A autoaceitação pressupõe um processo de cura constante desses dois fatores.
Para tanto, devemos sempre buscar os sacramentos e a oração de cura interior, seja ela ministrada por um irmão ou perseguida na oração pessoal. Vale lembrar aqui e existência de livros católicos que ensinam a orar pela autocura interior.
Leia o restante desta seção na formação da próxima semana!
QUIROGA, Aldo Flores e FLORES, Fabiana Pace Albuquerque. Práticas de Vida e Relacionamento – Ministério Jovem RCCBrasil. Módulo Serviço – Apostila I. 2ª edição.
Siglas:
CIC – Catecismo da Igreja Católica
GS – Constituição Pastoral Gaudium et Spes
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