
Estamos atravessando o deserto quaresmal juntamente com Jesus e com toda a Igreja. Como o povo que sai do Egito, da casa da escravidão (Cf. Dt 13,10), passa pelo deserto para chegar à Terra Prometida, onde corre leite e mel (Cf. Dt 11,9). Jesus, o novo Moisés, que nos conduz à Terra Prometida, que é o céu.
Por que passar por esse deserto? Será que o Senhor quer nos fazer sofrer?
O Senhor mesmo responde: “Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante esses quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos de teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos” (Dt 8,2). O sofrimento no deserto manifesta o que o ser humano tem no coração, no centro mais profundo de suas decisões. Coração, que deveria ser orientado pela Lei, para viver da Palavra de Deus (Cf. Dt 8,4).
O deserto quaresmal deve nos proporcionar um coração novo.
Porém, o erro é achar que o sofrimento em si, ou as penitências em si, vão produzir um coração novo. Sempre vamos ter que lembrar que é por graça que somos salvos (Cf. Ef 2,8). Sem a ação do Espírito Santo em nós, não conseguimos fazer absolutamente nada. É o Espírito Santo que conduz Jesus para o deserto para ser tentado e nesse mesmo Espírito que o Senhor inicia sua vida pública para pregar o Evangelho e conduzir o ser humano ao Reino de Deus (Cf. Mt 4,1; Lc 4,1).
O verbo “criar” na Sagrada Escritura somente tem por sujeito o próprio Deus. É Deus quem cria o ser humano e o chama à vida (Cf. Gn 1,26-27; 2,4bss). E é o Senhor que cria no ser humano um coração puro depois que este cai no pecado (Cf. Sl 50,12).
O profeta Ezequiel analisa essa verdade mediante outra perspectiva: “eu lhes darei um só coração e os animarei com um espírito novo: extrairei do seu corpo o coração de pedra, para substituí-lo por um coração de carne” (Ez 11,19). “Eu vos darei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez 36,26). O coração de pedra, coração idolátrico, deve ser esmigalhado (Cf. Sl 50,19) e refeito em coração de carne, recriado. A idolatria do pecado desumaniza o homem ou a mulher, torna-o escravo (Cf. Jo 8,34). Somente pela ação do Espírito Santo, Deus recria em nós um coração humano, um coração de carne, capaz de amar e ser amado, e acolher a Lei, que nada mais é do que a educação de um Pai amoroso que quer que cresçamos e entremos em comunhão plena com Ele, participando de sua natureza divina (Cf. 2 Pd 1,4).
Novamente, o profeta Ezequiel demonstra esse desejo de Deus: “Repeli para longe de vós todas as vossas culpas, para criardes em vós um coração novo e um novo espírito. (…) Não sinto prazer com a morte de quem quer que seja (…) Convertei-vos e vivereis” (Ez 18,30b-32). Deus não quer a morte do pecador, quer que o ser humano tenha vida plena, e somente tendo um coração novo, renovado pelo Espírito de Deus, o ser humano não pecará.
A promessa da descida do Espírito é para nos dar força e assim renovados nos tornamos testemunhas verdadeiras do Senhor (Cf. At 1,8).
Penitência não é uma sala de torturas de um ídolo que quer nosso mal. Mas, o esforço de um ser humano, na graça do Espírito de Deus, para crescer e ter decisões que louvam a Deus. Essa é a nossa Quaresma! Que sejamos homens e mulheres novos pela graça de Deus.

Padre Micael de Moraes, Sjs
Pároco da Paróquia Nossa Senhora de Pentecostes
e São Francisco de Assis